Angélica Torres -
Gol de placa, o primeiro dia de 2023 no Brasil! O país chorou um rio amazonas diante de tanta cena comovente naquele cenário niemeyeriano histórico da Esplanada dos Ministérios e da Praça dos Três Poderes. Catarse individual e coletiva da vitória de nossa dura guerra de seis anos contra o golpismo e o fascismo – guerra aliás enfrentada sempre de forma pacífica, com incontáveis análises, com criatividade, arte, o nosso sempre-humor, a nossa “manemolência” que nos põe a salvo de sagas de derramamentos de sangue.
Lula lá no palco histórico ensinando como é que se volta à cena "por cimíssima de tudíssimo"¹. A Aula Magna do Ser e do Fazer Político (em pessoa e em tempo real e ininterrupto desde 1978), ali no alto da rampa, coroado, mais que "enfaixado", por representantes dos segmentos minimizados da nossa diversidade étnica e cultural – da qual ele se constitui o símbolo, por excelência, por destino, por missão indubitável.
E, então, a gente “se raoniu" ² na rampa, ao som de Villa-Lobos em seu/nosso Trenzinho Caipira! E Pelé vendo tudo mais do alto, sua alma fascinada sobrevoando o povo, desenhado no chão como uma alfombra de flores de flamboyans entre os monumentos de Niemeyer, enquanto o seu corpo de campeão, preparado para o funeral na madrugada seguinte à desse dia de glória, sinalizava um Brasil que se vai e outro que volta, renovado, em passes quase de mágica.
(De quebra, aqui, a lembrança deste registro jornalístico do início dos anos 1980: Quando interessado em saber sobre personalidades brasileiras, o trabalhador médio europeu só perguntava por dois nomes. Um era Pelé. O outro, Lula. Portanto, que curioso desfecho o deste dia 1o, nesse roteiro envolvendo os dois pop stars do Brasil – e sem a mão física de um autor o assinando, hein, companheiros?).
E o minuto de silêncio, na abertura da cerimônia na Câmara dos Deputados, à partida do ídolo do futebol brasileiro? Bem, este, cada um de nós sabe como lhes bateu na emoção. Aliás, cada brasileiro certamente que ontem se tornou uma espécie de jornalista e tem tudo guardado em seu íntimo relicário pra contar aos das novas gerações o que viu e sentiu, ao longo da nossa longa temporada no inferno e mais ainda desse grandioso 1º do ano. É um dia que não cabe num só dia.
Enfáticos pormenores
Entre tantas percepções, uma especial, impossível de não ser captada (por esta escriba, ao menos): aqueles que acossaram, condenaram, humilharam, torturaram Luís Inácio da Silva, nos deram o prazer de vê-los baixar a cabeça, guardar o rabo murcho entre as pernas e reconhecer a maestria da personagem Lula, em toda a sua espetacular trajetória, própria de uma bela ficção literária. Abaixa sim a crista, cambada!
Era visível a expressão de suas máscaras, detrás dos largos ou de mal disfarçados sorrisos, flagrando (ufffa!) o contraste com a tragédia que subjugou o país nesses últimos seis anos. Os da mídia corporativa, os militares, os parlamentares, os do judiciário, os das polícias, os da área econômica, todos esses que tentaram sufocá-lo, agora tendo de dar a mão à palmatória para Lula, em seu já clássico papel de mandatário exemplar para todo o Planeta.
Mas ele, o “companheiro Lula”, com seu ar de um duende profundamente emocionado e ao lado de sua bela, natural, espontânea, toda swingada princesa plebeia, também expunha na face de pele rosada as marcas honrosas da dor nordestina de tanta luta travada na vida e as de toda a sua experiência acumulada – contrastando com os demais rostos, todos mais jovens, morenos, quase sem marcas, que o cercavam em cada ato da Posse.
E os discursos dele nas duas tribunas? E na voz embargada, e arranhada que nos preocupa, o vigor posto com todas os tons das cores do arco-íris na defesa ao nosso povo? E a subida apoteótica ao Palácio do Planalto, com a cadelinha Resistência atordoada à frente e cercado por cacique, negro, mulher, deficiente e lgbtqia+. Eu, que era a favor de Dilma passar a faixa, me dei por extasiada e bem vencida nessa queda de braços. Céus, que lindeza de cena! Que felicidade vermos nossa inteireza ali recuperada!
E os dois elegantes casais presidenciais desfilando juntos no rolls-royce? – ah essas quebras de protocolo, que só descontraem (e engrandecem) a pompa e circunstância da turma convicta do "style" noblesse oblige!
E essa “primeira dama”, que dá um peteleco nos modos empedernidos das antecessoras no posto e sai se metendo, palpitando, decidindo sobre pontos fundamentais, transformando e adequando tudo à medida do povão todo nosso?
E quem no mundo dos cerimoniais presidenciais é chamado por todos em seus apelidos carinhosos, como Lula e Janja?
É muita coisa para processar, reescrever, reencaixar e assim nos reencontrarmos de fato e de feitos com nossas raízes únicas e de por elas lutar pra que a "Democracia Para Sempre" se torne um milagre brasileiro!
Darcy Ribeiro e Joãozinho Trinta – eita, se ainda conosco! – poderiam juntos dirigir o próximo Desfile das Escolas de Samba, com todas elas dando a sua personal leitura desse dia pleno. A Praça da Apoteose se fundiria com a dos Três Poderes e viveríamos felizes para sempre... até quarta feira, que é hoje a segunda-feira nossa de, ainda, desfrutarmos dessa dulcíssima memória, mesmo que exaustos.
Porque a seguir é arregaçar as mangas e rolarmos a pedra para o alto da rampa, todo santo e herege dia, sem trégua. É para nunca mais nos esquecermos do conselho enfático do nosso sábio Presidente: "Você tem que lutar todo dia!". Pois.
Então, Feliz Ano Novo em folha de lutas com finais assim felizes, meu Brasil brasileiro!
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¹ Referência ao mantra de John Lennon, antes de entrar com os Beatles nos palcos.
² Referência ao verso do poeta Luis Turiba Ou a gente se Raoni ou a gente se Sting, sobre o célebre encontro do músico inglês com o Cacique, no Xingu, em 1989.