"A vida é de quem se atreve a viver".


A Declaração Conjunta dos presidentes da Rússia e da China, na abertura da XXIV Olimpíada dos Jogos de Inverno, em Pequim, sinaliza para uma Nova Ordem Mundial
Carta ao Mundo de Rússia e China e o cinema de Oliver Stone: chaves para entender a guerra na Ucrânia

Angélica Torres (*) -

Os que assistiram à ousada minissérie As Entrevistas com Putin, de Oliver Stone, quando estreou mundialmente em 2016, podem não ter observado que a conversa em torno da Ucrânia é o único tema, do amplo espectro de assuntos polêmicos abordados, que perpassa os quatro episódios. Nem o jornalista, escritor, biógrafo Fernando Moraes, que ganhou de presente do cineasta os direitos de exibição da série no Brasil, destaca o mote, no vídeo em que apresentou o lançamento da série por meio do seu (hoje extinto) blog Nocaute e da TVT.

A Ucrânia ainda não estava em cartaz como agora, senão, decerto, aos olhos bem abertos e às antenas ligadas de especialistas no xadrez geopolítico – o que prova, e atualmente mais ainda, a importância e a dimensão histórica da série, bem como a visão de longo alcance do cineasta historiador, roteirista, produtor e escritor nova-iorquino. Mais de 1,8 milhão de espectadores a assistiram, segundo notificação da TVT. Mas quem ainda não viu, deveria ver e quem viu há anos, também devia revê-la, para ter maior amplitude de análise do conflito deflagrado na região. Afinal, somos um contingente de 216,6 milhões de cidadãos.

Além das questões da Ucrânia colocadas por Putin, e de outras tantas, louvando o que deve ser louvado e deixando o que é ruim de lado, ainda mais importante é observar que no substrato de suas conversas com Oliver Stone, o que ressalta é a mesma posição, seis ou mais anos depois, anunciada ao mundo na Declaração Conjunta dos presidentes da Federação Russa e da República da China, em 4 de fevereiro passado, na abertura da XXIV Olimpíada dos Jogos de Inverno, em Pequim, sobre a Nova Ordem Mundial que o bloco oriental almeja.

“É preciso construir um novo mundo, o dos que pensam no futuro para daqui a uns 25 a 50 anos”, Putin diz textualmente ao Stone, “com relações multilaterais entre os países e povos, porque o tenso e perigoso mundo bipolar do pós-guerra e o unipolar do fim da URSS não interessam nem servem mais”.

Putin repete isso também em outros trechos dos quatro episódios; no último, ilustra esse ideário com ironia sutil, uma explícita e pontual crítica ao decadente protocolo dos presidentes norte-americanos, mas também aos da antiga URSS, “como se nada mais de importante tivessem a fazer” (do que, pendurar medalhas em seus pescoços...).

A guerra de informação

A muitos dos que insistem nos chavões de “machista, homofóbico, sanguinário, assassino, ditador, czar, demônio”, a personagem de Vladimir Putin revelada pela mão do cineasta causa surpresas. Quando não, enfurece ainda mais os russófobos de plantão, ou lhes enfatiza a putinfobia, com clássicas reações, do tipo: “Vi a metade do primeiro episódio, o Oliver vai continuar assim chapa-branca a entrevista inteira”?

Pela clara postura anti-imperialista adotada em sua obra cinematográfica, (Platoon, Snowden, A história não contada dos E.U., entre outros), Oliver Stone é sim um red, mas não ao estilo Reed – (John Reed), o jornalista norte-americano, que está enterrado na Praça Vermelha em Moscou.

Este personagem, que figura na História mundial por seu heroico relato testemunhal em primeira mão da derrubada do império russo e tomada do poder em 1917 pelos comunistas, interpretado por Warren Beatty em Os 10 dias que abalaram o mundo, recebe de Oliver Stone uma pincelada de orgulho em tom didático e charmoso à sua equipe técnica, já quase ao final da série, indo todos juntos conhecer o mausoléu de Lênin – aonde ele faz também uma curiosa e significativa observação acerca do “carma” do líder dos bolcheviques.

Do tratamento diplomático inicial do documentarista/repórter no episódio 1 das Entrevistas, desenvolve-se uma relação entre dois cavalheiros de privilegiada inteligência que, num crescendo até o episódio 4, agem como num duelo de esgrimistas, cada um em sua área. E o cineasta obtém relatos surpreendentes de Putin, nunca antes possíveis de conhecer, considerando-se a imagem do líder temido e odiado pela difamação e censura, que ao monopólio midiático estadunidense interessa manter sempre em alta.

Como produtor executivo e estrela das entrevistas do documentário A Ucrânia em chamas, Oliver Stone também colaborou com as denúncias ao golpe de estado da CIA neste país, mãe da Rússia, que culminou na explosiva situação atual – o que confere ainda mais legitimidade e credibilidade a ele (e ao seu trabalho), como cidadão norte-americano e amante que é de seu país, independentemente de suas posições ideológicas.

Por outro lado, no conjunto de sua obra e sobretudo no dos fatos atuais, Stone ajudou também a evidenciar a postura desesperada do acirramento dos EUA e de seus aliados europeus – que não querem largar a rapadura de sua hegemonia do mundo –, levando o comediante e presidente-fantoche Volodymyr Zelensky à ofensiva do anúncio de determinação da Ucrânia de entrar para a OTAN, após sucessivas tentativas de negociação da Rússia, e no mesmo mês em que Putin e Xi Jinping apresentaram oficialmente a sua Declaração Conjunta.

Estamos, portanto, segundo diversos especialistas, testemunhando as dores do parto de nascimento de um novo mundo.

A Carta Conjunta de Putin e Jinping

De acordo com o professor de pós-graduação em Economia Política Internacional da UFRJ, José Luís Fiori (na foto, abaixo), “a extraordinária originalidade da Carta ao Mundo de Putin e Xi Jinping cresce com a defesa de valores como liberdade, igualdade, justiça, direitos humanos e a democracia como um valor universal e não como privilégio de algum povo em particular que imponha aos demais um modelo superior de democracia”.

A proposta revolucionária da Declaração Conjunta, destaca Fiori, é de que se aceite o sistema interestatal não mais como monopólio da verdade e da moralidade dos europeus, nenhuma civilização, povo algum superior aos demais. Sobre o futuro desta “nova era” em processo de parto, Fiore professa que a China não se propõe a substituir os Estados Unidos como centro articulador de algum tipo de novo “projeto ético universal”.

E tudo indica, ainda segundo suas análises, que “o avanço desta nova ‘era multicivilizacional’ não tem como ser revertido para o sistema mundial anterior, de completa supremacia eurocêntrica. Mesmo que o eixo ainda não tenha se deslocado inteiramente para a Ásia, já se estabeleceu um novo ‘balanço de poder’”, afirma o professor. (Veja no final deste texto a íntegra da Declaração publicada no site do PCdoB e que recebeu atenção blasé na mídia corporativa brasileira e assim permanece).

De acordo com Celso Amorim, ex-ministro das Relações Exteriores e também da Defesa, dos governos Lula e Dilma, a Carta de Putin e Xi constitui-se no fato mais importante e singular, desde os eventos que marcaram o fim da Guerra Fria, em particular, a derrubada do Muro de Berlim e, sobretudo, a dissolução da União Soviética. O diplomata assinala ainda, que, “mesmo sem a força jurídica de um tratado, a Declaração expressa com clareza nunca antes alcançada uma realidade até aqui vista apenas como uma possibilidade: o fim da era da hegemonia quase absoluta dos Estados Unidos sobre os destinos do mundo”.

A guerra que assistimos implica-se, por conseguinte, na forçosa mudança hegemônica do mundo, do bloco E.U./Otan/Europa, para o da China e Rússia, aliadas, tomarem a dianteira ainda nesta década, segundo prognosticam os especialistas. Testemunhamos então o canto do cisne dos prováveis falidos unidos, resistindo no ataque ao velho fantasma, os seus inimigos russos, e usando como bucha de canhão a Ucrânia, o bode expiatório pela posição estratégica na região onde se situa, e pondo assim a Rússia em condição de real e potencial perigo de extinção.

O futuro batendo à porta

Podemos esperar que muita água deverá ainda rolar sob essa ponte minada, e muito sangue também. O movimento gigantesco das relações entre potências é lento, complexo, em relação ao nosso, de insetos, em nossas vidinhas pessoais de expectativas e sonhos.

E segue firme a campanha de desinformação da guerra, levando a reboque nas redes sociais os que se expõem como Os Pacifistas, taxando os russos como os grandes e únicos Vilões do Planeta Terra. Esquecemos que ao nosso redor são diárias as guerras que matam pretos, indígenas, mulheres, gays, como bem nos lembra o jornalista e escritor José Arbex Jr. E por estes, não se ouvem choro e ranger de dentes com a paixão e o alarde que se observam em torno do conflito distante, embora sim, ameaçador e perigoso, indiscutivelmente.

Biden em sua démarche deixa o fantoche comediante se estropiar por si, mas deixa também à própria sorte o povo ucraniano, com a antológica avidez por poder expansionista do Estado americano. Guerra é fábrica de caos. Quanto pagam de carma esses irresponsáveis, quando muitos deles morrem impunes?

Refugiados da Ucrânia chegando na Estação de Hamburgo, Alemanha (Foto: Dida de Lima)

Relatos do campo de batalha na Ucrânia, segundo apurações da turma das webtvs independentes, e de reports como o do coronel americano aposentado Douglas McGregor, na CNN, nos últimos dias, indicam que a Rússia pode pôr EUA/Otan/Europa no bolso, com o cerco que fez na costa da Ucrânia (tal como Putin explica a Stone que os americanos fariam à Rússia, se avançassem com a OTAN às suas fronteiras). O que pode sinalizar um lento, mas provável fim da tensão na região.

Putin desmonta os focos dos nacionalistas de extrema direita ucranianos ligados a Zelensky, os neonazistas, terroristas, fanáticos, o batalhão Azov, que aterrorizam e violentam a população da capital e de seus arredores, desde o golpe da revolução colorida, há oito anos. Ingrata a Europa aos feitos passados da Rússia em favor dela, também: a coça aos napoleônicos e a vitória sobre os nazistas na 2ª Grande Guerra à custa de 8,6 milhões de vidas ceifadas dos soldados e soldadas soviéticos, aparentemente, livrando o continente europeu de uma serpente de muitas cabeças.

No entanto, a Europa preferiu se aliar aos Estados Unidos... e eis que o terrorismo internacional é hoje essa ameaça real à utopia projetada aos novos horizontes. No episódio 3 da minissérie, na Sala de Guerra do Kremlin, Putin mostra ao cineasta e sua equipe, em tempo real, um cenário dessa realidade que mais parece um filme de ficção. Além de explicar como se dão as relações dos Estados Unidos com a Rússia, nesse campo do terrorismo internacional.

Quanto ao desenho da utopia anunciada, é torcer para que as dores do parto cessem sem longa tardança e que a “nova era” da carta conjunta nos traga junto aquela moça chamada Esperança, que vive no fundo da caixa de Pandora e nunca morre. Nossos filhos, netos, os futuros descendentes, mais que a promessa, merecem a real tentativa da chance e da experiência de um mundo melhor que o que tivemos até agora.
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(*) Angélica Torres é jornalista da área de Cultura e poeta. Foi editora de Internacional no Correio Braziliense, em 1994/95, quando cobriu (como tal), a guerra da Chechênia e a crise cubana dos balseros, entre as diversas outras guerras e tensões mundiais da época.

Clique aqui para assistir às Entrevistas de Putin com Oliver Stone - Episódio 1 ...
Aqui, a íntegra da Declaração Conjunta, publicada no site do PCdoB

 

 

 

 

 

 

 

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