Angélica Torres –
O inesperado nos pega de surpresa quando e de quem menos se espera, mesmo que estejamos vivendo em alerta sob o duríssimo signo da Morte, a regência destruidora de Ziva, os avassaladores tempos de Tânatus. Como não ficarmos estupefatos e incrédulos diante da notícia da partida do cineasta e radialista Bernardo Bernardes, de 44 anos, que homenageou o poeta e professor da UnB Cassiano Nunes com o curta (veja o filme aqui) premiado no 37º Festival de Brasília do Cinema Brasileiro (2004). Um ser amante de poesia, gentil e estimado por todos os que o conheceram.
Bernardo deixou o meio cultural desolado, logo que a notícia correu neste domingo (7/2) tributos, despedidas, mensagens de afeto foram surgindo nas páginas de seus amigos nas redes. Um dos que mais lamenta a perda do amigo é Sergio Moriconi, professor de cinema e com quem Bernardes fez sequenciados cursos na 508 Sul (Espaço Cultural Renato Russo), começando quando ainda tinha 17 anos.
“Bernardo era sensível, amável, generoso. Era um anjo”, define com tristeza Moriconi. Quando fez o curta, concebido e estruturado naquelas aulas, Bernardo Bernardes tornou-se como que um filho de Cassiano Nunes; passou a levar o velho poeta para onde ele precisasse, conta seu professor. Embora tendo cursado Cinema e Vídeo na Columbia College, em Chicago (E.U.), conquistado a Bolsa Internacional da Vancouver Film School (Canadá), fundado a Visionária Produções Artísticas e dirigido a trilogia Prisões, se sentia inferiorizado por não ter tido a formação acadêmica que gostaria ou, ao menos, terminado um curso universitário, conta Moriconi.
De família mineira politicamente influente, tanto pelo lado paterno quanto materno, descendente de um ícone da construção de Brasília, Israel Pinheiro, segundo seus amigos revelam, Bernardo tinha suas complexidades, suas carências, sofria crises de depressão cada vez mais graves e amiúde e se queixava de sua situação com amigos próximos. Marlos Bryner, companheiro desde os cursos de cinema na 508 e de literatura na UnB, se encontrou com ele três dias antes da morte. Tomaram um açaí juntos e Marlos viu o amigo entregue, achando tudo muito difícil e sem vislumbrar saída para si próprio.
Marlos Bryner o aconselhou a procurar outro terapeuta, a mudar os remédios. Não percebeu que Bernardo já se achava no limite. “Fiquei em choque quando soube da notícia. Estou ainda”, se consterna. Encontrado pela namorada no fim de semana, já sem vida, em sua própria casa (teria morrido na sexta de madrugada), depois de passar 20 dias na casa do pai, procurando apoio para o mal estar que vinha sofrendo, Bernardo Bernardes foi enterrado na manhã de ontem, segunda-feira, no cemitério Campo da Esperança, em cerimônia discreta e comovente, com a presença de muitos amigos e de sua família.
Poesia como alento para crianças carentes
Importa ressaltar ainda, que, toda essa sensibilidade, todo esse coração enorme e delicado que Bernardes tinha, foram postos a serviço de um projeto de poesia, desenvolvido numa creche religiosa do Lago Sul, voltada ao atendimento de meninas carentes, filhas de serventes da região, habitada pela elite brasiliense.
Tudo começou quando, em 2010, poetas se apresentaram para as crianças daquela creche, como contrapartida ao prêmio de apoio recebido da Secretaria de Cultura do DF, para a publicação de seus livros, na coleção Oi Poema. Éramos cinco publicados nessa coleção. E a pedido da professora do Colégio Marista, Cristina Del’Isola, decidi levar o projeto adiante, apoiada por duas integrantes do Movimento Maria Claudia Pela Paz, a bibliotecária Rosângela Mello e a jornalista Katia Aguiar.
Criado para amparar Cristina Del’Isola, após a tragédia hedionda que se abateu sobre sua família, o Movimento tornou-se uma bandeira de ações beneficentes nas periferias de Brasília e de combate à violência às mulheres e feminicídios. Uma de suas primeiras ações foi “adotar” a creche Instituto N. Sa. da Piedade, do Lago Sul, onde promoveu reformas nas instalações, proveu a escola de computadores e materiais diversos e onde fizemos o Projeto N. Sa. da Poesia, de 2010 a 2014.
Levamos, semanalmente, mais de 50 poetas da cidade para falar poesia para alunas de 9 a 12 anos, de forma livre e lúdica. Era um orgulho e uma alegria para todos os participantes a sensação de ajudar com arte àquelas meninas, vítimas do sistema perverso que nos subjuga, crianças difíceis e sofridas com os crimes que rodeavam suas vidas, nas satélites onde vivem.
Já em 2011, expandimos o convite a artistas de outras áreas, cujos trabalhos tinham ligação direta com a poesia. E Bernardes não só aceitou participar dos encontros de 2011, como, após 2015, assumiu por conta própria o Projeto e se dispondo a ministrar sozinho, por seis meses, as “aulas” lúdicas.
Assistindo ao curta Viva Cassiano com as alunas
Ontem (8/2) pela manhã, a jornalista Katia Aguiar, em nome de Cristina Del’Isola e do Movimento, enviou esse recado a ele: “Ô Bernardo, que falta você está fazendo em nossos corações. Eterna gratidão do Movimento Maria Claudia pela Paz pelo conhecimento, carinho e alegria que levou para as meninas do Instituto. Fique com a nossa eterna saudade”.
Vladimir Carvalho: “Tinha, sim, alma de passarinho”
Depoimento de Vladimir Carvalho (*):
“Foi um domingo difícil de atravessar, como se não bastassem as agruras da pandemia. Mal acabara de lamentar, com amigos comuns, o falecimento de um amigo querido, o jornalista e crítico de cinema paraibano, Martinho Moreira Franco tive um baque terrível ao saber do falecimento de Bernardo, nosso ex-aluno, autor de um dos melhores curtas metragens realizados em Brasília sobre o poeta Cassiano Nunes. Hoje esse é o único documento filmado do celebrado escritor e professor, que deixou uma marca em Brasília.
Bernardo, que Cassiano considerava como um filho, despontou como um talento de grande inquietude e sensibilidade, o que, por si só, nos legaria muitas saudades e lembranças. Uma vez, faz anos, meio que sumira e ligou-me de surpresa de Nova York (ou era Londres?), direto do seu trabalho na cozinha de um restaurante! Dessa surpreendente viagem resultou uma espécie de diário filmado, do qual sempre me lembro, pois na volta mostrou-me parte dele já editado. Depois foi de um seminário, creio que budista, onde fazia uma espécie de retiro, e falando deste como de importante experiência mística na sua trajetória que voltou a me ligar.
Tinha, sim, uma alma leve de passarinho, que incluía suas pretensões no cinema. Talvez tenha sido, pelo menos em seus sonhos, um precursor do drone. Quem sabe esse motorista de Uber, que Marcelo Diaz cita com muita perspicácia em seu belo e comovente perfil do amigo, fosse mais um voo que estivesse empreendendo em torno do cinema, numa pesquisa sui generis em busca de personagens para futuras incursões audiovisuais. Improvisava, portanto, como um treinamento, nesses dias em que de certa forma paralisamos nossas atividades.
Devo a Bernardo o reencontro com um velho e admirável amigo, outro paraibano, Zenivaldo Padilha, há muitos anos em Brasília. Bernardo fez dele um perfil e incluiu-me entre os que deram depoimentos para um pequeno filme. O Padilha, entre outros dotes e guardados, como por exemplo ser fanático admirador de Sinatra, recebera desse uma resposta, mesmo protocolar, de uma longa carta que lhe escrevera. Verdadeira lenda, que muito motivava nosso cineasta.
Viajávamos juntos nessas suas aventuras, sem imaginar que ele partiria tão cedo. Resignei-me, entretanto, ao cabo desse dia, vendo pelas notas aqui postadas por muitos dos nossos, o quanto de fato ele era tão querido e estimado, pois foi um exemplo de doçura no trato, alegria de viver e dedicação às amizades. Era da série roseana, daqueles que não desaparecem, se encantam. Quem sabe nos vê agora do alto, no seu voo definitivo pilotando o seu drone”.
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(*) Depoimento postado no domingo, no Facebook, com autorização do autor para reprodução no site Brasiliários.
(As fotos do Projeto de Poesia são de Rosangela Mello).
Agradecimentos a Luciana Barreto, Carmem Morethzsohn e Sids de Oliveira.