"A vida é de quem se atreve a viver".


Angélica Torres: “O Dia do Rock, 101 anos após a morte de Rosa Luxemburgo, trouxe a imponderável certeza de que a vida seria insustentável sem os músicos, os poetas, os revolucionários de todos os tempos, para nos valerem como faróis nos períodos de insistente escuridão”.
Aos astros que nos ajudam a viver

Angélica Torres –

Grudada na TV no último 13 de julho, vendo a programação em homenagem ao Dia do Rock, percebi que o rock fez, e ainda faz, de quem o ama um ser humano melhor. O enfeitiçante show do Doors, o do lendário Led Zeppelin, o dos Stones em Cuba, de arrepiar a alma, e o extasiante Us and Them, do gigante, político, Rogers Waters e essa indubitável certeza: o rock educa, lapida a consciência, toca fundo a sensibilidade, enquanto as guitarras choram a poesia humanista que os músicos entoam.

“Antes que eu caia naquele sono profundo/ quero ouvir a voz da borboleta. / Nós queremos o mundo e o queremos agora”, cantava Jim Morrison; “E eles dizem que em breve/ se todos entoarmos a canção/ então o flautista nos trará de volta à razão/ e um novo dia nascerá/para aqueles que resistirem”, Robert Plant em seu recado antológico; “Eu fui à manifestação receber a minha parte de agressão”, Mick Jagger tão próximo de nós; “Grande homem/ homem porco/ adivinha o que você é/ seu magnata endinheirado/ ei, você, Whitehouse/ adivinha o que você é/ sua ratazana conservadora/ você tenta manter nossos sentimentos fora das ruas”, Waters citando George Orwell e atingindo Trump em cheio.

Ali, comovida diante de tantos poemas de conteúdo sociopolítico musicado, a imaginação voou alto e retrogadamente: fiquei imaginando a polonesa Rosa Luxemburgo (1871-1919) subindo ao palco, de microfone em punho, com o seu chapéu florido, seu claudicar charmoso (os mancos me enternecem!), a pregar seu lírico, revolucionário pacifismo, ao modo de Patti Smith em tom de discurso, mais do que propriamente de canção.

Olhava para a tela da TV e para o livro dela no meu colo, tendo esta outra certeza: o mundo não teria perdido em grandeza de ideias e de palavras se Rosa Luxemburgo, em vez da militância em prol da luta do proletariado internacional, tivesse se dedicado à poesia. Além de filósofa, economista, professora, feminista, essa admirável, douta mulher, a principal líder da Liga Espartaquista, reconhecida como a mais importante marxista da História, deveria ser catalogada também como literata, tal o teor poético contido em suas cartas escritas na prisão.

Mais que o peso dos seus textos de teoria política, a leveza e a beleza de seu lirismo estonteiam. Além de sublimes, as cartas da prisioneira, datadas de 1916 e 1917, deixaram férreas lições, especialmente para nós, neste nosso duro momento histórico. Os trechos transcritos abaixo comprovam e nos servem de exemplo de coragem e tenacidade.

Carta de Rosa à prima Sonia Liebknecht

(...) "É o meu terceiro Natal no xadrez, mas não considere isso tragicamente. Estou calma e alegre como sempre. Ontem fiquei muito tempo acordada – agora não consigo dormir antes da uma, mas preciso ir para a cama às dez, porque a luz é apagada –, e então, no escuro, sonho com diversas coisas. Ontem então pensava: como é estranho eu viver permanentemente numa alegre embriaguez, sem nenhuma razão em particular.

Assim, por exemplo, estou aqui deitada nesta cela escura, no colchão duro como pedra, enquanto à minha volta, no edifício, reina a habitual paz de cemitério; parece que se está no túmulo. Através da janela desenha-se no teto o reflexo do bico de gás ardendo a noite inteira na frente da prisão. De tempo em tempos houve-se o ruído surdo de um trem que passa ao longe, ou então, bem perto, debaixo das minhas janelas, o pigarro da sentinela, que, com suas botas pesadas, dá alguns passos lentos para desentorpecer as pernas.

A areia estala tão desesperadamente sob esses passos que todo o vazio e a falta de perspectivas da existência ressoam na noite úmida e sombria. E aqui estou eu deitada, quieta, sozinha, enrolada nos véus negros das trevas, do tédio, da falta de liberdade, do inverno – e, apesar disso, meu coração bate com uma alegria interior desconhecida, incompreensível, como se sob um sol radiante eu estivesse atravessando um prado em flor.

No escuro, sorrio à vida, como se eu conhecesse algum segredo mágico que pune todo mal e as tristes mentiras, transformando-as em luz intensa e felicidade. E, ao mesmo tempo, procuro uma razão para essa alegria, não encontro nada, e tenho que sorrir novamente – de mim mesma. Creio que o segredo não é outro senão a própria vida; a profunda escuridão noturna é bela e suave como veludo, basta saber olhar. No estalar da areia úmida sob os passos lentos e pesados da sentinela canta também uma bela, uma pequena canção da vida – basta apenas saber ouvir.

Nesses momentos penso em você. Gostaria tanto de passar-lhe essa chave mágica para que você percebesse sempre, em todas as situações, o que há de belo e alegre na vida, para que também você viva na embriaguez, como que caminhando por um prado cheio de cores. Longe de mim a ideia de contentá-la com ascetismo, com alegrias imaginárias. Concedo-lhe todas as verdadeiras alegrias dos sentidos. Só gostaria de dar-lhe também a minha inesgotável serenidade interior, para não me preocupar mais com você, para que andasse na vida com um manto de estrelas protegendo-a de tudo o que é mesquinho, banal e angustiante”.

Carta à mulher do diretor da prisão (*)

Noutra também longa carta, dirigida à mulher do diretor da prisão em que seus inimigos políticos a encarceraram, não é menos surpreendente o rigor literário com que Rosa Luxemburgo narra as belezas da flora e da fauna miúda do jardim do pátio onde ela tinha permissão para passear. Mas o destaque dos trechos abaixo é para o entusiasmo com que encara a duríssima condição de seus últimos anos de vida. Em 1919 ela seria assassinada pelos soldados prussianos, com a cumplicidade de seus antigos companheiros socialdemocratas.

"Toca e triunfa e jubila em silêncio no céu a orquestra das cores por cima dos muros tristonhos da Barnimstrasse. O sol, o sol desponta sobre a fábrica de vinagre! Salve, velho, eternamente jovem sol, saúdo-te! Se apenas continuares me querendo bem, se vejo tua face dourada, o que me importam grade e cadeado? Pois não sou livre como aquele pássaro no telhado, que te exulta agradecido como eu? Se porventura, no fogo de uma Revolução Russa, eu for conduzida à forca, limita-te a brilhar para mim no pesado caminho e caminharei feliz e sorridente até minha última elevação, como para um banquete de casamento."

"Aproxima-se o meio-dia, finalmente pego meu Homero e recolho-me à minha cela. O bom Homero quedou-se pacientemente o tempo todo em cima do banco. A senhora também conhece o efeito maravilhoso de um bom livro ao alcance das mãos, mas que não se lê. Quantas vezes procuro um bom livro que me acalente suavemente até o sono, à noite. Às vezes demora até encontrar o livro certo. Então, coloco na mesinha, ao lado da cama – sem tocar nele. Basta sua mera presença.

Assim, Ulisses me faz companhia todas as manhãs no meu passeio pelo pátio, mas neste outono ainda não fui além dos insultos do corcunda Tersites. E o que importa? Tersites morreu há muito tempo, mas a aranha vive, compartilha comigo o breve instante da existência que nos foi destinado pelos deuses. Uma tarde na prisão passa muito depressa”.

Então, a celebração do Dia do Rock, 101 anos depois da morte de Rosa Luxemburgo, tem a força de trazer, melancolicamente, esta imponderável certeza, de que a vida seria insustentável se não contássemos com os músicos, os poetas, os revolucionários de todos os tempos, para nos valerem como faróis nos períodos de insistente escuridão.
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*Carta de 10 de março de 1917 para Hanna-Elsbeth Stühmer. Tradução de Ângela Mendonça e Roberto Muggiatti, com a colaboração de Adriana Borgerth, Simone Ruthner e Oswaldo Kuster Neto e coordenação de KrIstina Michahellis. Fonte: Rosa Luxemburgo ou o preço da liberdade. Org. Jörn Schütrumpf. Fundação Rosa Luxemburgo: SP, 2015.·.

 

 

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