Angélica Torres –
Quem nascido antes dos anos 1980 não se lembra da onda New Age (“Nova Era”) que então invadiu o mundo anunciando musicalmente o clima cósmico de uma tal Era de Aquário, que o cinema e o teatro também popularizaram ainda nos anos 1960, com Hair, e que vaticinava o surgimento de uma humanidade mais pacífica e justa no planeta Terra?
Quem também não se recorda que na mesma década, motivada pela proximidade da virada do milênio, essa onda de contornos místicos impeliria a produção de incontáveis filmes, contraditoriamente, de ficção científica, em torno do fim e de um novo mundo, bem como de outras temáticas e propostas estéticas afins?
À época, cineastas respeitados como Wim Wenders e Hal Hartley, Steven Spielberg e George Lucas, Ridley Scott e James Cameron e tantos outros exploraram a seu modo essa vertente e, mesmo antes, também os consagrados Fritz Lang (anos 20), Stanley Kubrick (anos 60), Andrei Tarkovski (anos 70). Depois de 2000, Lars von Trier e Steven Soderbergh foram alguns dos que se destacaram nessa mesma trilha.
Sonoramente, a trilha dessa tendência veio embalada pelos tons cósmicos de ícones como Vangelis e Jon Anderson, Kitaro e o minimalista Phillip Glass. Não menos o mercado editorial apostaria suas fichas nesse arcano do tarô chamado Roda da Fortuna, para também surfar na onda com centenas de novos autores de livros de autoajuda.
Como um movimento que caiu como tudo o mais nas garras da “cultura de massa” (conceito que embute o domínio de qualquer tendência pelo sistema capitalista, para se tornar rentável comercialmente e, no caso, diluir o tom do protesto), a New Age recebeu ataques sistemáticos da intelectualidade, na mídia. Análises irritadas em torno do alarde tomado como logro pipocaram pra todo lado. Mas não impediram que o tal “fim do mundo” e sua notoriedade de origem em profecias milenares ganhassem versões da época.
Chico Xavier, Trigueirinho, Tia Neiva do Vale do Amanhecer, Jayadev da Fraternidade da Cruz e do Lótus, entre tantos outros videntes no Brasil, mas também Osho já lançando a proposta de sua polêmica base empírica de novo mundo, um misterioso personagem intergaláctico de nome Ashtar Sheran e, quem diria, até mesmo Carl Jung, prenunciaram as tais alarmantes transformações.
A partir de 1970
Quando, nos anos 70, a guerra do Vietnam caminhava para o final e a rebeldia do movimento hippie começava a perder força, o advento da internet estava nascendo de fato e se popularizando desde o meio universitário norte-americano. A física quântica ganhava ares místicos com a publicação de O Tao da Física, de Fritjof Capra, arreganhando os dentes de meio mundo científico por sua velha rixa com a religião.
Fora do esquadro, nós, aqui atravessando uma década inteira de governo militar, chegaríamos a meados dos anos 1980 alquebrados, mas com o vigor da esperança numa bela volta por cima, enquanto o muro de Berlim estava prestes a ruir e o lado vencedor, o do capital, já avançava com sua avassaladora política da globalização. Nesse emaranhado, sinteticamente aqui pontuado, uma crescente consciência subliminar de declínio no planeta foi se infiltrando no imaginário humano, sem que ainda se fizesse ideia do quê viria daí, de fato.
Quem aliás poderia imaginar que, quatro décadas depois dos nefastos presságios para o planeta, alardeados para ocorrerem exatamente até no máximo 2019 – e justo por videntes e por delirantes visionários remanescentes dos movimentos beatnik e hippie dos anos 60 e 70 –, um microrganismo viria a ser o agente da virada do mundo de ponta-cabeça?
Bem, cineastas imaginaram e continuaram certeiramente alertando; ambientalistas internacionais e nacionais advertiram para o perigo dos desequilíbrios ecológicos; lideranças aborígenes e indígenas, com destaque ultimamente para Ailton Krenak, nos imploraram por respeito e compaixão uns pelos outros; e bruxos retrôs, à meia-boca, já sem espaço na mídia, não pararam de preconizar uma situação catastrófica se avizinhando, embora sem diagnóstico preciso.
Covid19 e súbito mundo transtornado
Pois, o embrulho vinha de tal modo embalado em ritmo reto e rápido que não se deu atenção nem se pôs fé alguma no estardalhaço anterior. A guerra atômica mundial, que até recentemente Noam Chomsky declarou ainda temer, do plano do terror espetacular tomou a forma de coronavírus pondo, quem tem teto, de castigo em casa e quem não tem, de dono da rua e da natureza a céu aberto. Fichas caindo ou não, a esquisitice pairando sobre uma grande incógnita a coçar as cabeças.
E a esta altura dos combates, quem se lembraria das advertências do Comando Ashtar, que mais pareciam conversa de HQ e de fanzine para as jovens gerações dos anos 1970 e 80? Aquela esperança de gente que descrente dos humanos sonhava e ainda sonha com uma espécie de resgate ou intervenção de ETs, acabaria por trazer novos relatos, imagens e vídeos de óvnis circulando ao redor da Terra. Mas, e Ashar Sheran, quem foi nesse contexto e por onde anda?
"Tenho boa sensação ao ouvir esse nome pela primeira vez e eu até queria que fosse mesmo a nossa Nave Mãe chegando, mas ainda não é. Recentemente ouvimos que há centenas de civilizações inteligentes no Universo próximo e talvez sejamos os únicos burros, por isso os ETs preferem não manter contato", ironiza a publicitária e escritora Carolina Vieira Orm. Atenta aos fenômenos especulados, ela comenta que bilionários estão enchendo o céu de traquitanas.
“Elon Musk, dono da SpaceX, assinou contrato com a NASA e já pôs mais de 500 satélites na órbita da Terra, sob o argumento de levar internet barata a lugares remotos do mundo, imagina, o Big Brother agora em planos intergalácticos”, provoca. Carolina aponta que os mais novos são os que ficam visíveis e brilham forte de noite, fazendo muitos suporem estar vendo Ufos. Mas logo ela diz que “outros países não investiriam milhões se não houvesse evidências” e mostra reportagens recentes sobre buscas por aliens feitas pelos chineses e sobre a criação de protocolo japonês para contatos futuros – além de releases e vídeos de registros de óvnis liberados pelo Pentágono há cerca de um mês.
Txais dos novos tempos
Bené Fonteles (foto abaixo) vai ainda mais longe que Carolina Orm. Artista múltiplo, ativista e cidadão planetário como ele se define, afirma que sua constelação de origem são as Plêiades, assim como é pleidiana a pessoa de quem psicografa mensagens, que são como puxões de orelha na humanidade, e as edita na série intitulada Panfletos da Consciência. Bené circula nas redes as mensagens dessas canalizações, ou psicografias, que lhe ocorrem desde os anos 1980, época em que lia as mensagens de Ashtar Sheran.
Sobre o paradeiro de Ashtar ele conta que há muito não tem notícias, mas que “deve estar cuidando da Terra lá no orbe celeste, dentro de alguma nave interestelar”. O movimento New Age, segundo afirma, “agora é chamado planetariamente de Projeto Nova Terra”, ao qual ele tem se dedicado com arte, música, literatura e rituais xamânicos. Bené vê como uma incógnita o mundo pós-pandemia. Não responde, questiona: “Será que vai passar? A humanidade vai compreender a lição para quê veio a pandemia? Virão catástrofes naturais terríveis, muito naturais por tudo o que fizemos de ruim com o planeta nos últimos séculos?”.
Carolina de Leon abandonou o alto salário do cargo de gerente de vendas, exercido por sete cabalísticos anos na Editora Iluminuras, de propriedade de seu pai, em São Paulo, para viver como uma autêntica cidadã da Nova Era. Primeiro, com seus natos dons xamânicos, buscou se curar de mazelas com a saúde, adquiridas na refrega urbana da megalópole. Depois, mudou-se para Alto Paraíso de Goiás, onde passou a viver como curandeira de pessoas com diferentes enfermidades astrais, atendendo a uma indução mediúnica de Ashtar Sheran. Jornalista com PG na USP em divulgação científica, ela teve dois fortes contatos com seu mentor espiritual e depois não soube mais dele.
Carol de Leon crê que “a pandemia é a tal história do joio e do trigo, sim”: veio para dizimar grande parte da população mundial, como era esperado de um processo cármico da humanidade. Conta que sonhou com uma pesada nuvem negra passando pelo planeta e que aonde sua baixa energia ressoasse ela entraria. Os que se recusassem a prosseguir na experiência da vida em 3d e aceitassem as condições impostas não seriam atingidos e assim, o preconizado salto quântico do planeta poderia se dar – embora se ignore quando de verdade vai iniciar, ela ressalta.
Arautos da velha New Age
O relato desta curandeira nascida nos anos 1970 liga-se ao conteúdo das reportagens de Sonia Hirsch, no Caderno B do JB, nos anos 1980. Hirsch foi a primeira repórter da grande imprensa a abordar com liberdade a temática da nova era, que se anunciava em torno dos conceitos de holística, de alimentação orgânica, de busca do equilíbrio do ecossistema planetário, do incremento à ciência em favor de uma sociedade saudável mas, socialmente, com tendências ao individualismo nos primeiros tempos, ela já narrava.
Estávamos ainda longe do advento da internet baixar entre nós com a aceleração que chegou na década seguinte, pondo a cotoveladas e de imediato no ostracismo a mensagem e o modo de viver da “turma delirante” – que, por sinal, não fazia mal a ninguém. Só para lembrar: eram cidadãos de outros modos e outras modas. Nada tinham da inacreditável violência fascista da atualidade. Os beats e hippies, esses “bichos-grilos” que inundaram o mundo com o mantra Paz e Amor, acabaram provando que a realidade é o sonho – e não o desatino doentio da Matrix em que nos aprisionaram nestes primórdios da web.
Pois, também da linhagem desse papo mais que reto, a sacerdotisa Jayadev foi outra que ouviu o chamado de Ashtar Sheran para deixar o magistério no Rio de Janeiro e viver em Brasília, na década de 1970.
Segundo seu guia espiritual, ela deveria criar na capital ainda adolescente a sua ecumênica “Fraternidade da Cruz e do Lótus” e atuar como curandeira áurica. E assim ela fez. Abriu seu ashram ao chegar, em Taguatinga, depois se transferiu para a QI 28 do Lago Sul. Lá mitigava as dores espirituais e físicas de seus fiéis, sem cobrar um tostão, até morrer octogenária mais de 20 anos depois.
Jayadev já em fins dos anos 1980 lamentava a crescente decadência do Rio. “Lá não há bons espíritos mais; amo, mas é uma cidade de ênfase muito materialista, difícil para espiritualistas viverem nela”. A sacerdotisa e curandeira contava que seu mentor, aliás, se afastara da Terra. “Há alguns anos não consigo mais conexão com Ashtar. Silenciou-se depois dos inúmeros alertas dos rumos que o planeta está novamente tomando, sem ter aprendido as lições das duas grandes guerras. Ele dizia que, se até os 20 primeiros anos do novo milênio, a humanidade não se corrigir, correrá sério perigo de extinção”.
Em 1999, na UnB, a figura emblemática de Ashtar Sheran foi tema de uma palestra que superlotou de estudantes o Anfi 9. “Estava todo mundo doido na véspera da virada do milênio”, conta Cristiano Lacerda, que era então estudante e assistiu à exposição. Na saída do anfiteatro, vendia-se um conjunto de três zines, editados em Campinas-SP e intitulados Projeto Evacuação Mundial pelo Comando Ashtar que, somados aos demais produtos culturais da época, bombardeavam na cabeça da rapaziada o terror do apocalipse esperado para o futuro próximo.
Mas quem seria Ashtar Sheran?
Afinal, quem é esse ser misterioso da ufologia mística, que manteve contatos telepáticos com médiuns e videntes, muitos já falecidos, dos anos 1950 até a década de 1980? Ashtar Sheran era tido como o comandante em chefe de uma frota intergaláctica, que em 18 de julho de 1952 teve sua primeira mensagem canalizada e poucos anos depois publicada em livro por Herbert Victor Speer e outros integrantes do Círculo de Médiuns da Paz de Berlim.
Ao que parece, o personagem espacial se preocupava muito com os destinos da Terra no contexto planetário e mais curioso ainda: sua missão esotérica tinha uma pegada revolucionária, porque se conectou exatamente com cidadãos de países-chaves das duas guerras mundiais, Alemanha e Itália, além de norte-americanos. No Brasil, seu nome chegou em 1965, um ano após o golpe militar que nos subjugou por longos 21 anos. E enquanto permaneceram psicografadas por sensitivos naquelas três décadas, suas mensagens foram amplamente divulgadas pelo mundo.
Conta-se que Ashtar Sheran procedia de um planeta da galáxia de Alfa Centauri, a mais próxima do nosso sistema solar. Alto, loiro, feições delicadas e uma aura meio que de santidade caracterizavam sua figura mítica e mística. As descrições detalhadas evocam os personagens de histórias em quadrinhos daquelas décadas do século passado ou os das sagas estelares dos filmes de George Lucas. Porque não foi aproveitado pelo cineasta, que como se sabe é também espiritualista, de certo modo é outro mistério...
No entanto, o cineasta e artista visual Karim Aïnouz lançou no último dia 9 de junho um curta-metragem de ficção científica com 10min. de duração, cuja história parece ter saído das cartilhas de Ashar Sheran. Missão Perséfone se passa no ano 3020, quando a humanidade completa 100 anos em um corpo celeste da constelação austral da Baleia, conhecido como Superterra por seus habitantes.
A sinopse do curta – “Esse foi o destino escolhido pelos sobreviventes do evento que marcou a extinção da vida humana no antigo planeta Mãe e que culminou no grande êxodo de 2020. A mudança para o novo planeta inaugurou o fim do império da mercadoria e do Capitaloceno e o início de uma Nova Era. A Missão Perséfone é o esforço desta nova civilização, justa e igualitária, de construir uma arqueologia do seu passado no Planeta Azul, para que os céus nunca mais caiam”. Tudo a ver com o Comando Ashtar.
Karim Aïnouz e os canalizadores de Ashtar Sheran poderiam se espelhar nas palavras de Bené Fonteles: “Se o que eu psicografo do pleidiano não passa de ficção, o que vale é a mensagem”. Pois, desde tempos imemoriais, desde o oráculo de Delfos, das pitonisas, as sibilas de antanho, que profecias existem não para serem cumpridas, mas para alertar os inconsequentes de que sempre é tempo de retomar os rumos do movimento dos barcos. Entretanto, sem deixar que passe da hora H, “claro, claro!”, como diria Glauber Rocha.
Com a pandemia, o mensageiro espacial entrou novamente em cartaz, pela mão de um grande número de pessoas que certamente não viveram os tempos em que os primeiros sensitivos o tornaram um astro pop. Uma poeta e psicóloga carioca – que não quis se identificar, mas que nos anos 1970 leu o primeiro livro do alemão Herbert Speer sobre ele – chama a atenção para as psicografias sem seriedade, fajutas, que correm hoje pela internet.
Depois de seu sumiço nos anos 80, tornaram Ashtar num avatar do Arcanjo Miguel. Chegaram a misturá-lo com o Cristo e outros mestres ascensionados da Teosofia e de outras linhas ocultistas – uma questão quase que já “normal”, na era do F de falso... Bem, para efeito de epílogo, apenas deixando claro que o personagem retratado nesta reportagem é o antigo.