"A vida é de quem se atreve a viver".


Angélica Torres: “Este texto é uma homenagem à guerreira amável e desprendida [Gisele Nogueira, na foto], que recusa, não tenho dúvidas, o título de mártir de uma história tenebrosa – essa, de brutalidade, ignorância e terror, que repudiamos com todas as nossas forças e aspiramos que se vá, de uma vez por todas, para muito longe de nós”.
“Casaco Marrom”: memórias de uma guerrilheira

Angélica Torres

Leitores e mesmo escritores têm razão quando dizem que ler um bom livro de pessoa que se conheceu muito proximamente é uma viagem emocionada, daquelas que permanecem pairando no imaginário e no lado esquerdo do peito por dias seguidos, rumo ao para sempre. É o caso de Casaco Marrom, O amor nos tempos da guerrilha, de Giselle Nogueira.

Publicado em 2010, pela Record, na coleção “Galera”, o livro cativou o público juvenil estudantil. Atraiu escolas que levaram a escritora para dar palestras à rapaziada e ganhou dois prêmios, um em Manaus outro no Rio de Janeiro. Mas não se restringe à juventude, também encanta adultos que o descobrem tempos depois (um viva à Estante Virtual!), como foi o meu caso.

Ainda mais atual do que quando foi lançado, Casaco Marrom (na foto, abaixo) vai por uma narrativa inteligente, bem construída, saborosa, com uma elegância e um bom humor que diferenciam a autora de outros escritores desse tema espinhoso da luta armada, ocorrida na segunda metade de 1960, durante a ditadura militar, no Brasil.

Se foi uma surpresa descobrir o livro de Giselle Nogueira, a guerrilheira, dos 16 aos 20 anos, que no romance adota o codinome Raquel, não posso dizer o mesmo dos ingredientes que fazem o livro ser devorado de um fôlego. Giselle sempre foi brilhante, aplicada, curiosa, interessante, misteriosa. Desde menina. É daquelas personagens que passam pelas nossas vidas com uma aura que as distingue, embora só mais tarde se constate ter notado isso lá atrás, com nitidez.

Filha de um capitão do Exército transferido para o interior de Goiás, ela passou a infância estudando no colégio das freiras e lendo Monteiro Lobato, vendo filmes no Cine Estrela, andando com latas presas nos pés e mãos com barbante, jogando baliza, pulando corda, brincando de pique e passa-anel, subindo nas grimpas de cajueiros e fazendo piruetas de patins, junto com a meninada da vizinhança.

Além de estudiosa e moleca, era sonhadora e romântica, tanto que precisou se recolher e colher suas memórias torturadas para saber, 30 anos depois, onde e como teria de fato começado a perigosa aventura que daria uma guinada radical em seu destino.

Não à toa, portanto, o título do livro, inspirado no da canção de Renato Correa/Danilo Caymmi e Guttemberg Guarabyra, vencedora do Festival de Música de Juiz de Fora (MG), em 1969, que começa assim: “Eu vou voltar aos velhos tempos de mim, vestir de novo o meu casaco marrom (...)”. Foi um hit que marcou época na voz de Evinha: iluminou aqueles tempos pra lá de sombrios e compôs bem com o resgate da trajetória revolucionária de Giselle.

"Foi ali, naquela pequena cidade goiana, que Raquel, aos 12 anos, ouvira falar pela primeira vez em ‘justiça social’. Aprenderia a ler nas entrelinhas do Evangelho. Tomaria consciência de que era líder e, como passo seguinte, ingressaria na JEC (Juventude Estudantil Católica)”, ela narra no romance.

Brincamos juntas por anos seguidos como grandes amigas, até que nossas famílias se mudaram de cidade e perdemos contato. A dela foi para Minas Gerais, aonde, aos 17 anos, ela se engajou no movimento estudantil, que sob a liderança da UNE (União Nacional dos Estudantes) enfrentava a repressão noutras partes do país.

A partir de então, Giselle embarcaria em direção à clandestinidade como militante do Colina (Comando de Libertação Nacional), surgido em Minas em 1967 e que em 1969 fundiu-se com a VPR (Vanguarda Popular Revolucionária), de Carlos Lamarca, dando origem à VAR-Palmares (Vanguarda Armada Revolucionária Palmares).

O romance captura o leitor logo na primeira frase, quando o relato acelera o coração e o impulsiona a curtir as valentes, às vezes, divertidas aventuras de Raquel, sem querer interromper a leitura. À trama tecida em flashbacks, Giselle Nogueira, jornalista de profissão, intercala informações verídicas sobre os fatos políticos e culturais que ocorriam com vigor naqueles anos de brava resistência. Natural e despretensiosamente, leva o leitor a imaginar as cenas com clareza, como num longa-metragem com toques de documentário.

As notícias que tínhamos dela naquele período, nós, os seus amigos de infância – e mesmo depois que “caiu” prisioneira – eram controversas, talvez fantasiosas. Talvez nunca saibamos de fato o que se passou, as ações desempenhadas junto à organização, nem o seu real codinome e as barbaridades que sofreu nos porões dos órgãos de repressão. Ela se dá ao direito, todo dela, de relatar o possível que sua memória humana suporta.

Daí deduzo porque o subtítulo O amor nos tempos da guerrilha. A paixão vivida aperiodicamente com um companheiro de luta durante a clandestinidade sustenta de ponta a ponta o sopro de esperança por liberdade e justiça, no furacão de sua saga. “Foi pensando nos jovens de hoje que decidi escrever este livro”, confessa na apresentação do romance. Claro, porque entre seus pendores e formações, Giselle Nogueira tem também o magistério. Lecionou na UFMG e na PUC-Minas.

Por isso o saque, de mestra, de dirigir o livro às novas gerações, com um recado conciso e sábio. Quando convidada em 2010 a falar em colégios sobre sua militância política, no final ela ouvia de estudantes que a vida hoje não tem graça, que não há mais causas pelas quais lutar e mais batalhas a serem vencidas. Pois ao ler o seu relato, o que me fica de substrato é a imagem da colegial, a menina sensível, perspicaz, que conheci, capaz de uma entrega obstinada à sua causa, mas fadada a equívocos e fracassos porque feita de carne e osso e não de película de filme.

A história, aliás, foi adaptada por uma turma de faculdade de cinema, em Belo Horizonte. Mas merecia ganhar uma versão que entrasse em circuito. Giselle na pele da Raquel me evoca o anjo caído, Cassiel, de Wim Wenders em "Tão Longe Tão Perto". Tão puro, tão ingênuo, que se estrepa todo ao final da história. Mas isto é só uma metáfora. Raquel escapou com vida e Giselle vive, vitoriosa, em algum lugar recôndito do país. Mas essa é uma outra história. Felizmente, também real.

E este texto é só uma homenagem à guerreira amável e desprendida, que recusa, não tenho dúvidas, o título de mártir de uma história tenebrosa – essa, de brutalidade, ignorância e terror, que repudiamos com todas as nossas forças e aspiramos que se vá, de uma vez por todas, para muito longe de nós.

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