"A vida é de quem se atreve a viver".


Angélica Torres: “Um dos pacifistas mais influentes de toda a tradição católica, Thomas Merton é mais um cuja morte permanece envolta em mistério. Foi encontrado morto num hotel de Bangcoc (Tailândia), em 10/12/1968, com a versão oficial de ter sido eletrocutado na fiação de um ventilador após sair do banho, embora suspeitas apontem que tenha sido assassinado a mando da CIA”.
Thomas Merton, um monge político e poeta

Angélica Torres –

No auge dos conflitos políticos que dominaram o mundo nos anos 1960, um monge trapista francês sobressaiu-se como um crítico radical do militarismo dos EUA e tornou-se uma das mais atuantes vozes antiguerra. Defensor da não violência, da justiça social e do diálogo interreligioso com seus muitos escritos em prosa e verso e palestras mundo afora, a palavra de Thomas Merton faz falta hoje, com o planeta novamente transtornado.

Há exatos 51 anos de sua morte, visto como um dos pacifistas mais influentes de toda a tradição católica, Merton é mais um cuja morte permanece envolta em mistério. Foi encontrado morto num hotel de Bangcoc (Tailândia), em 10 de dezembro de 1968, com a versão oficial de ter sido eletrocutado na fiação de um ventilador após sair do banho, embora suspeitas apontem que tenha sido assassinado a mando da CIA.

Em histórico discurso no Congresso dos Estados Unidos, em 2015, o Papa Francisco (foto, abaixo) – que se sabe agora, também, sob a mira de agentes dos interesses do capital – afirmou: “Há um século nascia o extraordinário monge Thomas Merton, que flertou com ideais marxistas, encontrou-se na plenitude do amor-zênite da ética de Cristo e continua a ser uma fonte de inspiração espiritual e um guia para muitos. Merton era, acima de tudo, homem de oração, um pensador que desafiou as certezas do seu tempo e abriu novos horizontes para as almas e para a Igreja. Foi um homem de diálogo, um promotor de paz entre povos e religiões”.

Thomas Merton é considerado um religioso norte-americano não só por ter vivido nos Estados Unidos – nasceu em 31 de janeiro de 1915, na França, e em 1937 já cursava Literatura Inglesa na Universidade de Columbia –, mas também por ter feito (em 1947) os votos monásticos na Abadia de Nossa Senhora de Gethsemani, no Kentucky, e lá permanecido até seu fim. Merton tinha 26 anos quando chegou ao mosteiro, em 10 de dezembro de 1941 – mesmo dia em que morreria, 27 anos depois.

Foi lá que ele escreveu a autobiografia A montanha dos sete patamares, tida por muitos como o maior livro de espiritualidade do século XX, e outros cerca de 40 livros, entre eles, o famoso Homem algum é uma ilha; e O homem novo; Reflexões de um espectador culpado; Zen e as aves de rapina; Místicos e mestres Zen; A via de Chuang Tzu; Diálogos com o silêncio; A sabedoria do deserto; e Poesia e contemplação, para citar alguns.

De 1955 a 1965, o monge foi mestre de noviços da Abadia e nos seus três últimos anos, viveu como eremita numa edificação isolada no terreno do mosteiro. Thomas Merton fez de seu eremitério um front e de suas escrituras, uma arma contra ameaças à humanidade. Eram os tempos da corrida armamentista e da guerra do Vietnam, da qual se tornou um ferrenho opositor.

Merton dizia que a violência estava moldando a psique norte-americana.

"O foco real da violência americana não está em grupos esotéricos, mas na própria cultura, na sua mídia de massa, no seu extremo individualismo e competitividade, nos seus mitos inflacionados de virilidade e tenacidade, na sua preocupação avassaladora com o poder do exagero nuclear, químico, bacteriológico e psicológico. Se vivemos naquela que é essencialmente uma cultura do exagero, como podemos ficar surpresos ao encontrar violência nela?", escreveu.

Ele afirmava que a raiz de toda guerra é o medo. “Não tanto o medo que as pessoas têm umas das outras, mas o medo que elas têm de tudo". Há meio século, ensinava que o começo do amor “é deixar as pessoas que amamos serem perfeitamente elas mesmas e não distorcê-las para que caibam na nossa própria imagem, caso contrário, amamos apenas o reflexo de nós mesmos que encontramos nelas".

Descoberta da vocação monástica

Filho de um casal de pintores (um anglicano neozelandês e uma quaker norte-americana), que morreram cedo,  Thomas Merton viveu mais tempo com o avô materno, nos EUA. Mas a paixão literária nasceria no colégio interno na Inglaterra, quando leu William Blake, James Joyce e D.H. Lawrence, e estendeu-se aos estudos na Universidade de Cambridge, Inglaterra e depois, na Universidade de Columbia, em Nova York, onde se formou em Literatura Inglesa.

Lá, filiou-se ao movimento de jovens comunistas e trabalhou como crítico literário no New York Times e no NY Herald Tribune. Fascinado pela Idade Média, deslumbrou-se ao ler O espírito da filosofia medieval, de Étienne Gilson e depois as Confissões de Agostinho e A imitação de Cristo, até ser estimulado pelo monge hindu Brahmachari a buscar suas próprias raízes espirituais. Decidido a ser padre depois de ler San Juan de La Cruz, deu suas roupas aos negros do Harlem; seus livros aos franciscanos; desprezou dois de seus romances e enviou a um amigo o que sobrara: seu diário, seus poemas e um manuscrito da novela Journal of my Escape from the Nazis.

Pai solteiro - Ingressou na Igreja Católica, com a intenção de entrar para a Ordem dos Franciscanos (os Frades Menores), mas não foi aceito por ter sido pai solteiro, segundo revelou o teólogo e professor Getúlio Bertelli, PhD na obra de Merton. Segundo Bertelli, o abade Frederic Dunne, de Gethsemani, o admitiu sem se importar por ter sido pai solteiro. E observando o seu pendor literário, influenciou-lhe a escrever a autobiografia espiritual, sem supor que publicada seria um sucesso mundial.

A repercussão de A montanha dos sete patamares pôs Merton em contato com incontáveis personalidades, entre as quais dom Hélder Câmara, o também padre e poeta Ernesto Cardenal e o papa Paulo VI; Alceu Amoroso Lima, o Tristão de Athayde, e Aldous Huxley; Nicanor Parra, Erich Fromm e o próprio Étienne Gilson, que o aproximou da fé católica. O monge que queria fugir do mundo viu-se de súbito invadido em seu isolamento e obrigado a dar respostas a esse mundo atormentado pela guerra, pelas ameaças atômicas, pelo racismo, engajando-se pouco a pouco nesses temas, conta Bertelli.

Pasolini e Marx à luz de Merton

Não pairam dúvidas de que o monge Thomas Merton era um homem radical, universal, moderno, antenado com as correntes de pensamento que marcaram os movimentos beatnik e hippie, dos anos 1940 a 1960, e aproximaram o Ocidente às filosofias espiritualistas orientais – tendência iniciada na segunda metade do século XIX na Europa –, a ponto de ter analisado com notável lucidez O Evangelho Segundo São Mateus, filme de Pasolini que afrontou os católicos à época.

Na 1ª edição americana de Opening the Bible (The Liturgical Press, Minnesota), publicada dois anos após sua morte, Merton faz uma leitura da percepção do Cristo e de seus apóstolos pelo cineasta italiano. Enquanto esperava num quarto de hotel em Assis, a população e o trânsito se acalmarem do frisson causado pela visita do Papa João XXIII à cidade, para ir ao seu encontro, junto com outros artistas, Pasolini encontrou ali uma Bíblia “e para preencher o tempo, abrindo-a, leu o Evangelho de São Mateus. O filme que se seguiu foi dedicado a João XXIII”, recorda.

O filme - E segue o monge contando que “o valor desse filme consistiu em sua extraordinária sinceridade”, feito com orçamento reduzido em uma região muito pobre da Itália, com elenco de gente pobre, alguns, comunistas, e não de atores profissionais. “Pasolini interpretou o papel de São Pedro e sua mãe, o da Mãe de Cristo, e o resultado disso tudo foi uma espécie de auto da Paixão cinematográfico, com uma autenticidade visual que se aproximava da pintura florentina e senense do século quinze, mas sem as cores. O contraste com a artificialidade vulgar e vistosa de Hollywood foi, para dizer o mínimo, impressionante”, descreveu Merton.

“Muitos dos cristãos que assistiram ao filme o criticaram (...), por apresentar um retrato do Cristo que os assustava. O Cristo de Pasolini, jovem, moreno, que se mantinha esplendidamente distanciado, assustadoramente sério, não era evidentemente o adocicado, indulgente Jesus da arte da Igreja nas últimas décadas do século XIX. E os apóstolos não se apresentavam como fantasmas irreais, meras sombras, incapazes de entender um único fato sequer sobre a existência humana. Os atores de Pasolini eram homens muito reais, rudes, macerados, curtidos pelas intempéries, que haviam enfrentado guerras cruéis e se refugiado nas montanhas para fugir da polícia política e que conheciam o ocorrido nas prisões e nos campos de concentração – em uma palavra, assemelhavam-se aos homens mesmo escolhidos por Cristo para discípulos seus!”

“O Cristo de Pasolini não era um indulgente, mas exigente. Não era mole, mas firme, poderia ser quase impiedoso. O fato de que tantos cristãos se houvessem chocado com tudo isso é, em si, chocante. (...) Estamos esquecidos de que o amor pode ser exigente, impiedoso, inflexível? Especialmente quando encontra indiferença ante os sofrimentos de outros e a disposição de enganá-los e explorá-los sem mercê? O Cristo de São Mateus pode exigir rigorosamente que os homens sejam misericordiosos uns para com os outros, como condição única de os tornarem aptos a receber misericórdia”.

“Pasolini acabou necessariamente por fazer uma forte declaração sobre o Cristo, o homem e o mundo. (...) A teologia não pode dar-se ao luxo de permanecer insensível a tais coisas (...), quando demasiadamente abstrata, quando esvazia o Cristo e o Evangelho dessa realidade de ‘carne e sangue’, colocada pelos próprios narradores do Evangelho de maneira tão convincente, não nos ajuda a crer com mais fervor, nada há a ganhar em tratar o Cristo como se não fosse o ‘Filho do Homem’, título que ele próprio utiliza ao referir-se a si mesmo no Evangelho de Mateus”.

Marxismo – No mesmo livro Opening the Bible, Merton expõe uma interpretação de sua incursão pelas teorias de Karl Marx, que levou o Papa Francisco a chamar de “flerte”. “O marxismo é produto de uma longa tradição de pensamento profundamente influenciada pela Bíblia e pelo messianismo cristão. A mensagem da Bíblia é acima de tudo proclamada aos pobres, aos sobrecarregados, aos oprimidos, aos privados de privilégios”. E completava: “Marx se aproveitou desse fato, porém supunha ser a Bíblia essencialmente fraudulenta, uma manobra da classe dos que governam, para aceitar sua sorte por meio de uma mistificação”.

“À tese marxista de que a religião é o ópio do povo, estamos conscientes de que, mesmo sua escatologia revolucionária, pode ser apresentada como se baseando em larga escala no esquema bíblico. Pois uma das mensagens centrais da Bíblia é precisamente que o sentido último da existência do homem na terra se encontra na história e que a raça humana se movimenta para um Julgamento final, quando a própria história assistirá à punição dos opressores e à justa recompensa dos que por eles foram oprimidos”.

Assim, hoje se entende melhor porque o monge Thomas Merton pode ter tido sua vida misteriosamente abreviada aos 53 anos. O pior do medievalismo continuava então entranhado –, tal e qual se constatam, também agora, sua ampla presença e força.

Um poema de Merton
Dia de um estranho
O que uso, calças.
O que faço, vivo.
Como rezo, respiro.

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