Angélica Torres –
O legado da Liberation Music Orchestra é prova incontestável de que o jazz instrumental serviu como uma poderosa música de protesto à causa política, tanto quanto a tradição lírica de Bob Dylan.
A participação solidária da Liberation na história da queda do regime fascista português, bem como na retumbante oposição dos americanos ao governo Bush, só confirma que o contrabaixista Charlie Haden e a pianista e arranjadora Carla Bley produziram uma das mais interessantes e singulares “pequenas big bands”.
Haden fundou a Liberation Music Orchestra (LMO) em 1969, portanto, há exatos 50 anos, e não há data melhor para um tributo a esse jazzista americano que a do aniversário, hoje, da Revolução dos Cravos –, e justo na semana em que Sérgio Moro consegue, em solo lusitano, emplacar mais um vexame em nome deste “governo” brasileiro.
Charlie Haden está gravado na memória de Portugal como o músico de jazz que ousou desafiar o regime fascista português. Nunca será demais lembrar que, no 1º Festival de Jazz de Cascais, em 1971, Haden, o único músico branco do quarteto de Ornette Coleman, dedicava a sua “Song for Che”, aos movimentos negros pela libertação de Angola, Moçambique e Guiné-Bissau. Segundo o depoimento de um lisboeta anônimo, para os dez mil jovens que superlotaram o pavilhão de Cascais (de lotação de cinco mil pessoas), o próprio festival já representava um desafio à putrefata ditadura salazarista.
O mundo vivia os tempos de oposição e protesto à intervenção americana no Vietnã, aos ecos de Maio de 68 e da Primavera de Praga. Eram também os tempos de Woodstock, dos hippies e seus movimentos pela paz e pelo amor (make love not war), do rock e da pop music, do black power, do jazz elétrico e terrivelmente moderno de Miles Davis e do free-jazz de Ornette Coleman. “Claro que Charlie Haden seria preso, mas logo libertado com a intervenção do embaixador norte-americano em Lisboa, com direito a táxi grátis para a Portela”, conta o fã do memorável jazzman.
Antes de criar, em 1970, a Liberation Music Orchestra, reconhecendo o talento de Carla Bley para os arranjos do repertório, Charlie Haden trilhou um prolífero caminho, iniciado no final dos anos 1950. Logo depois tocaria com Ornette Coleman, integraria em 1967 o trio, depois quarteto, de Keith Jarrett, e em seguida ainda fundaria o grupo Old and New Dreams. Com a LMO, o talento do baixista somado ao componente político foi posto a serviço do humanismo, marcando a história do jazz com repertório inspirado em músicas populares e revolucionárias.
A obra da LMO - O primeiro disco, de 1985, The Ballad of the Fallen, foi dedicado à Guerra Civil Espanhola. Em 1990, o protesto da Orquestra estendeu-se à América Latina e Portugal com Grândola.
No final dos anos 1980, a Liberation contestaria o apartheid, com o Hino do Congresso Nacional Africano de Nelson Mandela, “Kusi Sikeleli África” protagonizando o disco, intitulado The Dream Keeper. E em 2005, Haden e sua LMO voltariam com o disco Not in Our Name (Não em Nosso nome), em oposição à intervenção americana no Iraque (leia mais abaixo sobre este último álbum e ouça a sua música-tema no link ao final do texto). Ainda antes, em 1987, Charlie Haden criou o Quartet West, que também passaria por Portugal outras duas vezes, no tido como inesquecível concerto da Liberation, em Guimarães, em 2006, e no Seixal, em 2010, levando Ruth Cameron ao palco do pavilhão.
Charlie Haden é cultuado entre os portugueses por sua importância na conscientização da inevitabilidade da queda do regime, em 1971, e essa amizade está registrada em três discos: Closeness, de 1976, de duetos com Ornette Coleman, Keith Jarrett, Alice Coltrane e Paul Motian, onde inclui o tema “For a Free Portugal”, no dueto com Paul Motian, a partir da intervenção em Cascais de 1971; The Ballad of The Fallen, de 1982, da Liberation Music Orchestra, em que toca “Grândola Vila Morena”, de José Afonso; e Dialogues, de 1990, em duo com Carlos Paredes. Para os portugueses, o nome de Haden diz muito mais do que o título de expoente do jazz dos últimos quase 70 anos. Será sempre lembrado, também, como “um amigo de Portugal”.
A Liberation contra Bush – O título Não em Nosso Nome (Not in Our Name), do último álbum da Liberation Music Orquestra, derivou dos cartazes de vitrines exibidos por moradores de toda a Europa, em protesto contra a invasão e ocupação do Iraque pelos EUA; Charlie Haden reparou nos cartazes durante uma turnê realizada em 2003. Para criar um álbum que articulasse sua própria oposição e de muitos outros americanos à guerra do Iraque, Haden remontou a orquestra e pediu a Carla Bley que organizasse o material com compositores americanos, de Ornette Coleman, Pat Metheny, Bill Frisell, Paul Bley e ele próprio, a Antonin Dvorak e Samuel Barber. Justificava a escolha do elenco de compositores como que declarando: "Não apoiar o que o governo Bush está fazendo não quer dizer que você não seja patriota".
A inclusão de hinos patrióticos icônicos em Não em Nosso Nome é ressaltada pelas estranhas e dissonantes vozes que Carla Bley empregou nos arranjos. A música é impressionante por todo o álbum, mas não menos admirável é o chamado de Charlie Haden em anotações deixadas para a posteridade: "Então, agora, embora tenhamos perdido a eleição, não perdemos o compromisso de reivindicar nosso país em nome da humanidade e da decência. Não desista -- a luta continua!".
Haden faleceu em 2014 de complicações da pólio contraída na infância, mas sua obra estará sempre ao alcance dos amantes do jazz e da música de alta qualidade artística. Tocou no festival de Montreal de 1989 com Egberto Gismonti, Gonzalo Rubalcaba,Don Cherry e vários outros jazzistas de renome. No disco The Montreal Tapes, de 1999, ele e sua Liberation Orquestra trazem um solo de Joe Lovano que marca o tema do discurso de “La Pasionaria”.
Discípulo de Mingus - Segundo o guitarrista brasiliense Genil Castro, musical e politicamente, a grande influência de Charlie Haden foi o também contrabaixista e ativista Charles Mingus. Tanto que, a partir da morte do mestre, Haden passou a integrar o quarteto Mingus Dinasty, criado em sua homenagem. Para Alex Queiroz, primeiro baixista da Orquestra Sinfônica do Teatro Nacional Claudio Santoro, Charlie Haden foi um gênio. “Não era exatamente um virtuose como Scott LaFaro, mas era chão, solidez, profundidade, simplicidade e elegância. Um artista em essência, que tocou com os grandes pianistas do mundo”, ressalta.
Haden tocou ainda com o mestre Kenny Barron, Jan Garbarek e também com as vozes de Melody Gardot, Diana Krall, Norah Jones, Cassandra Wilson e Renée Fleming. Marcou presença no bebop, no free-jazz, no blues, na pop e na folk music, tocando ainda com Yoko Ono, Elvis Costello, Joni Mitchell e Ginger Baker, para citar alguns.
Ouça a música tema de Not in Our Names em:
https://www.youtube.com/watch?v=bH7-W4Ba9YU
.