Maria Lúcia Verdi –
Imersa na avalanche de horrores que constitui nossa realidade neste talvez incomparável momento histórico, refugio-me, na medida do possível, na literatura. Graças a minha amiga uruguaia Tamara Chiz, pude ler o romance Viralatas, de Fabián Severo, professor, poeta e romancista nascido em Artigas.
Viralatas é escrito em portunhol, “língua”, como alguns já sabem, com status na literatura da América do Sul, sendo o romance de Severo um grande exemplo dessa polêmica vertente. O romance de Severo nos agarra pela poeticidade e eficácia dessa língua, esse portunhol criticado pelos puristas e tão inelutável, prendendo-nos ao mundo asfixiante de uma cidadezinha de fronteira, cenário para um personagem que não vê saída para si e para seus conterrâneos.
A atmosfera em que está inserido o protagonista de Viralatas lembrou-me a da Argélia do inesquecível Mersault, protagonista do romance O Estrangeiro, de Albert Camus. Um sendo o contrário do outro, ambos lidam com o radical isolamento e com a falta de sentido da vida - o do uruguaio, sendo pura sensibilidade, luta por superar a morte da mãe, escreve para tentar sobreviver a essa perda; o do argelino-francês, sendo pura insensibilidade, indiferente frente à morte da mãe e a tudo o que o rodeia, acaba sendo condenado à morte mais por este fato do que pelo assassinato de um árabe.
Um vive no interior do Uruguay, Artigas, outro na Argélia ainda ocupada pelos franceses. Isolamento do sujeito, ocupações geopolíticas, posturas éticas e morais em crise frente aos dilemas que se apresentam – seja para a Europa em guerra de 1942, seja para o Uruguay do presente século, seja para o resto do mundo.
O romance do uruguaio, em prosa poética, descreve e questiona a situação dos seres da (de) fronteira, os excluídos, sem a graça da esperança. O estrangeiro de Camus, um cético, mata um árabe num acesso de “loucura” provocada pelo sol (e pelo absurdo da condição humana) e não sabe por que o fez. Ambos parecem vítimas das circunstâncias, manipulados por deuses inconsequentes, sem liberdade.
As atuais circunstâncias que vivenciamos no Brasil parecem brincadeiras de deuses perversos com os quais não podemos medir forças - deuses que, embora tendo nome, são inatingíveis.
Quais limites próprios às democracias (constituições, o ethos de cada país) permitiriam identificá-las como tal? No que se refere à nossa democracia, de imediato podemos questioná-la. Como tantas “coisas” que se passam nas fronteiras do pensamento e nos limites da realidade, colocando à prova nossa capacidade de compreensão – entre elas, os limites entre os poderes do Estado, os limites das infindáveis narrativas que se querem afirmar como verdadeiras - os enredos de Viralatas (foto) e de O Estrangeiro, tratam do “non sense” que nos envolve, às vezes mais, às vezes menos explícito.
Dois livros que nos tiram o ar, como o que nos está em torno, mas que podem nos sacudir favoravelmente, despertar em nós a urgência do ativismo.
Fronteiras por todos os lados: os já excluídos dormindo na rua a poucos quilômetros do centro da Capital; cercas de arame farpado protegendo as casas dos condomínios; a linguagem massificada dos meios de comunicação recortando os menos letrados do mundo das ideias.
Um modelo econômico que não considera o fato de sermos uma sociedade com milhões de miseráveis, de que o Estado tem, sim, responsabilidade pelos que sempre estiveram além dos limites do “incorporável” pela sociedade.
Não é admissível que tantas pessoas, de todas as idades, estejam abandonadas e que a desculpa seja: “eles preferem dormir na rua”.
Teremos ideia do que realmente são os espaços-tempo (os mundos ou não mundos) das populações de fronteira (qualquer fronteira: dos Estados, de cor, de classe social, de gênero, de isolamento psíquico)? Os refugiados de todo o planeta (tão perto: os venezuelanos em Roraima), os sem terra, os que vivem no limite do humano, confundindo-se com o lixo e os fiéis animais que os acompanham - cães, cavalos, galinhas. Aqueles que precisamos esquecer (negar? matar? remover?) para poder dormir à noite.
Como pode um governo, um Congresso, com essa realidade social congelar por vinte anos os investimentos no que é básico para a transformação? Até que ponto essa transformação interessa, é a eterna pergunta que ecoa.
Tentando descansar um pouco disso tudo, viajo para o sul da Bahia. O que mais vejo, além do mar atemporal (embora não mais o mesmo, como os ambientalistas alertam) são placas: Propriedade particular, Propriedade Privada. Imagino um mundo sem propriedade privada, sem fronteiras e a angústia da impossibilidade de utopias faz-me sentir o estômago.
Na praia, os vendedores ambulantes me chamam de Baronesa em vez de Doutora ou Patroa, como em Brasília. As marcas do Império e de uma Lei Áurea ineficaz são evidentes a cada passo nessa Bahia que Caymmi consagrou, colocando claros limites a um suposto paraíso. Não há como fugir do nosso inferno, como nos mostra Severo, como nos mostrou João Gilberto Noll com seus personagens sempre no limite, em sintonia com os de Camus, na Trilogia do Absurdo.
Mas é nesta mesma Bahia que conheço um engenheiro florestal que me fala do coletivo independente Escola de Ativismo (www.ativismo.org.br e fb.com\ativismo), criado em 2012 para atuar na rede, oferecendo informações preciosas para os que pretendem resistir, enquanto sociedade civil, ou proteger-se das invasões cotidianas à privacidade.
Assim definem sua missão: “fortalecer grupos ativistas por meio de processos de aprendizagem em estratégias e técnicas de ações não-violentas e criativas, campanhas, comunicação, mobilização e segurança da informação, voltadas para a defesa da democracia, dos direitos humanos e da sustentabilidade.”
Navegando no site da Escola tenho um sentimento que se aproxima a certo alívio – talvez alguns limites sejam menos fixos do que parecem, certas impossibilidades menos definitivas, certas decisões não imutáveis, certas fronteiras transponíveis.
Uma sombra de esperança de que algo possa ser feito para que o mundo do Capital e da informação (e controle) não nos invadam. Camus, Sartre e Foucault: as questões apontadas pelo absurdo da realidade, pela ilusão de liberdade e pelo ostensivo controle dos cidadãos são cada vez mais pertinentes.
Ao terminar a leitura de Viralatas, abalada pelo relato da absoluta solidão do protagonista, imerso num permanente e infrutífero questionar-se, representante com voz dos marginalizados sem voz, ocorre-me pensar como será o processo de adormecimento dos poderosos do planeta.
Com que língua conseguirão silenciar uma realidade que grita? No nosso caso, o portunhol de uma fronteira impossível de controlar, com seus 17.000 quilômetros, talvez os embale de tal modo que adormeçam com imagens tranquilizadoras de um país inteiro sob ocupação militar.