Maria Lúcia Verdi -
Estou sem conseguir manter a frequência com que escrevia meus artigos para este jornal, isto me incomoda. O último, sobre o BRICS de Literatura tem mais de mês. Estou assim porque o que está acontecendo no Brasil, e no mundo, é tão complexo e assustador que não sei bem como me expressar.
Como tantos da (tradicionalmente chamada) esquerda, materialista (com abertura para o mistério), preocupada com os direitos humanos e com o meio ambiente, com um mundo comandado pelas grandes empresas - as origens delas (os países de onde provêm esses capitais) misturadas num único objetivo: o lucro e o desenvolvimento de um “mundo” que pertence a uns poucos. Que “mundo” têm os demais? Que direito têm os demais a um mundo no sentido (tradicionalmente chamado) de humano?
Escuto poucas colocações que enfrentem o pensamento único, as radicalizações, que coloquem dúvida, que busquem argumentos que tentem desvelar a (sempre velada) verdade. Refiro-me a todos os lados ideológicos. Todos parecem deter certezas num cenário em que, evidentemente, as certezas inexistem, no qual o que mais se vê, é a profundidade do “buraco” em que estamos, o Brasil e o mundo.
Um exemplo recente: numa discussão sobre estética, num âmbito literário, tenta-se desautorizar alguém (embora pessoa da área) pelo fato de ela ter “se mandado para a direita”. Hoje chamamos pessoas e classificamos atitudes de fascistas com excessiva facilidade. Já vimos isto antes e muitas vezes e isto é perigoso.
O tema do respeito ao outro, da ética, parece estar mesmo fora “de moda”. Penso em Dostoievski, um dos maiores entendedores da psique humana e no quanto ele, entre outros, já apontava para o perigo das atitudes comandadas pela moda. Classificamos pessoas muito rapidamente e mantemos rótulos sem nos questionarmos mais sistematicamente se elas os merecem.
Amigos, por todos os lados, Brasil, Estados Unidos, Argentina, Inglaterra etc... rompem amizades de anos porque a percepção do “melhor”, do mais acertado é diferente. A opção por uma linha mais ou menos neoliberal, por um Estado mais ou menos poderoso (ou mais ou menos responsável pelas políticas públicas) é suficiente para que numa mesa, ou numa rede social, pessoas amigas “deletem” umas às outras. Deletar é tão simples, mas é tão complexo.
Penso em Shakespeare, em Freud, em Proust além do já citado grande russo e de outros estudiosos da alma (ou do cérebro, ou do coração) humana. Quem deles acreditou em qualquer simplificação sobre a natureza humana? Longe disso, todos apresentam o labirinto das contradições que nos formam. Mas certamente os detentores do poder, legitimamente ou não (Putin, Trump, Temer, Lula e tantos haveria que citar) lidam com maiores desafios do que nós, simples mortais. O ego dessas pessoas, de todos os que detêm menores ou maiores poderes, tende a exceder seus naturais limites, a se iludir com as possibilidades do poder e, de ilusão em ilusão, grandes erros se tornam tristes realidades - decisões equivocadas são tomadas a torto e à direita, em todo o planeta.
Pobre planeta. Está tão sem rumo que seus habitantes precisam – e cada vez mais vemos excelentes documentários científicos sobre o tema – apelar para a esperança de que inteligências de outras origens, fora mesmo da nossa galáxia, possam vir a nos ajudar ou que já estejam tentando nos ajudar. A questão seria identificá-las e segui-las!
Daqui dessa Terra explorada há tanto, com sua gente sacrificada há tanto, está difícil enxergar saídas inovadoras, racionais, justas e eficientes que deem solução para a questão da fome e da distribuição de riquezas.
Enquanto escrevo este artigo, minha filha Letícia me envia um link com o samba enredo da Beija Flor. A primeira frase já me deixa tonta: “Sou eu, espelho da lendária criatura”, “monstro carente de amor e ternura”. Uau, me digo! De quem eles estão falando, será de Édipo e da Esfinge? E o samba segue se perguntando sobre que fé é esta a das pessoas que abandonam “ao léu” os que vemos por todas as nossas cidades, qual religião? E questiona: “pátria amada, por onde andarás?”. E sintetiza, num verso perfeito, o que eu dizia acima em tantas palavras: “Teu livro eu não sei ler, Brasil”.
Assista aqui ao Samba Enredo da Beija Flor 2018, por Giovana Galdino:
Teu livro eu não sei ler, Brasil. Sou eu, espelho da lendária criatura, um monstro carente de amor e de ternura. O samba fala em primeira pessoa, é o povo brasileiro quem fala. O povo feio, miserável, carente de tudo visto como um monstro também carente de amor e de ternura? Todos, mesmo os pertencentes à elite que comanda esse cenário carnavalesco que desde sempre é o nosso - cruelmente barroco e surreal Brasil - somos carentes de amor. Mas isto não justifica uma série de coisas injustificáveis. Por outro lado, pela carência, pode explicar muita coisa quando pensamos nos crimes cometidos pela população “descamisada”.
Poderá a lendária criatura do samba ser o monstro da Bela e a Fera? O que não será para sempre monstro, vindo a revelar sua outra face após o período de provação a que a Bela é submetida? Será este o período em que estamos sendo postos à prova na nossa capacidade de resistir? Não sei a resposta. Ou será referência à criatura demoníaca que há em todos, como a do lendário Dr. Jekyll e o Sr. Hyde, de Stevenson, personagem do filme “O médico e o monstro”?
Mas também o samba da Beija Flor nos recorda um conto magnífico de Machado de Assis, “O espelho”, no qual o protagonista, um militar respeitado e com alta autoestima ao se ver na circunstância em que, no sítio afastado de uma parente, não mais colocando seu uniforme, aos poucos vai perdendo a segurança sobre si, a ponto de se desconhecer. Sem o símbolo exterior de poder sua identidade se desvanece. Para salvar-se do desespero precisa voltar a colocar o uniforme e olhar-se no espelho. Seria interessante ver nossos políticos sem todos os tantos sinais exteriores de seu poder, observar quem resistiria a um enfrentamento com a solidão e a verdade de si.
Não tenho certezas a não ser de que é necessário o espelho, milhões de espelhos espalhados pelo Brasil e pelo planeta. Vejamo-nos realmente, sem ilusões, sem narrativas justificadoras – eduquemo-nos. Que possamos saber ler o Brasil, que o Brasil se faça capaz de ser lido, que as máscaras caiam neste carnaval de 2018. Num certo, óbvio sentido, há muito nosso Carnaval já deveria ter acabado.