"A vida é de quem se atreve a viver".


Verdi: "Vi a Papuda como um animal de concreto. O que eu poderia fazer por eles, os presos?".
Poesia na Papuda, anotações

Maria Lúcia Verdi –

Não sei bem porquê resolvi escrever sobre minha experiência na prisão da Papuda, em 1999. Ali desenvolvi uma oficina de poesia com doze internos, a convite da professora Rita Segato, que coordenava o oportuno projeto “Fala, interno!”, elaborado pela Universidade de Brasília e financiado pelo Fundo Nacional das Prisões, do Ministério da Justiça.

Fundamentado nas ideias de Michel Foucault sobre o Estado e sua função de vigiar e punir, bem como sobre a visão foucaultiana da formação da subjetividade, o projeto reunia profissionais das áreas de jornalismo, literatura, teatro e audiovisual.

Visava estimular nos internos a formação de um discurso que demonstrasse compreensão sobre sua situação pessoal - a “ideia do direito humano à palavra no cárcere”.  “Fala, interno!” supunha que a compreensão do ato criminoso, a reflexão sobre o que é a violência, o Mal, a consciência e a experiência humana, ao serem expressas oralmente, por escrito ou para uma câmera, poderiam modificar o sujeito.

As oficinas da palavra, de vídeo e cinema, de cordel e repente, de teatro, auxiliariam o processo de ressocialização dos presos.

O registro da experiência dos presidiários, em vídeo e por meio de textos, seus depoimentos sobre a violência, montaria um banco de dados importante para os estudiosos da violência.

Um circuito interno de TV apresentaria, além de programas pertinentes, filmagens feitas pelos próprios presos. Vê-se hoje, com a tremenda crise prisional que observamos, o quanto projetos como esse eram e são necessários.

A barbárie se instalou há muitas décadas nas prisões brasileiras que hoje expõem também um outro tipo de barbárie.

Em reunião com os coordenadores do projeto, fui advertida sobre a “retórica da autojustificação” utilizada pelos internos, mas estimulada a tratá-los “normalmente”, como seres humanos em situação de exclusão.

Saí do Departamento de Antropologia com um mar de ideias na cabeça e o coração em sobressalto: havia acertado ao aceitar tal desafio? Iria enfrentar cara a cara algo que lera em Foucault mas que não conhecia de perto. Não tinha ideia precisa da complexidade do desafio, que seria colocada em poemas por alguns dos futuros “alunos”. “Somos um povo bárbaro\ que luta todo o dia\ para sobreviver\ Somos guerreiros de uma sociedade\ que os quer ver pelas costas.”, escreveu um deles; outro, com título universitário obtido na prisão, diria de si: “Sou como um rastro de luz\ que se soltou de um cometa\ e que os perdidos conduz\ iluminando as sarjetas.\ Meu destino é ser um raio\ a cavalgar pelo espaço\ como um bom cavalo baio\ que desprendeu-se do laço.”

Comecei a pensar nos textos que me ajudariam a aproximar a poesia ao mundo dos internos, textos que explicitassem o quanto a poesia pode estar em qualquer lugar e a qualquer momento revelar-se. Recortes de textos de Graciliano Ramos, de Fernando Pessoa, de Adélia Prado, de Francisco Alvim, de José Godoy Garcia, de Gilberto Freyre, de Guimarães Rosa, de Marcel Proust, de Li Po, autores que “falariam” com eles.

Com entusiasmo iniciaria meu laboratório, não queria tratá-los como incapazes de dialogar com a alta literatura.

No primeiro dia em que cheguei à Papuda, dia 8 de setembro de 1999, encontrei uma noiva toda de branco, como qualquer noiva, que conversava alegremente com as amigas - em frente a elas, um grande bolo branco.

Quando saí a noiva ainda estava lá; cumprimentei-a, e ela respondeu: “obrigada pela força”. Neste primeiro encontro, depois que cada um dos doze internos se apresentou, coloquei no quadro o nome completo de todos e pedi que escrevessem sobre suas expectativas com relação ao Laboratório de Poesia, distribuí revistas, jornais, alguns livros e falei da importância da leitura para a compreensão do mundo.

Conversamos sobre leitura, pensamento, escritura, tempo perdido, isolamento e percepção do poético.

Num segundo encontro, li “Fala, Zéfa”, de Adélia Prado e pedi que escrevessem algo que falasse da origem deles, tentando lembrar algum momento em que a Poesia (enquanto o belo, o bom) tivesse aparecido na vida deles, por pior que a situação familiar tivesse sido.
Afirmei, para surpresa da turma, que a poesia está em tudo, no sujo, no errado, no feio, sendo preciso descobrir esse canal, essa conexão pode iluminar qualquer situação. Recordo–me que me escutava falar com angústia e era invadida pela sensação de que, para eles, eu deveria ser como uma fada alienígena, uma aparição que desapareceria.

Depois de escutarem os dois versos finais de um poema de Drummond (“mas a poesia deste momento\ inunda minha vida inteira”) um dos internos perguntou, apontando para a sala o chão e olhando para mim, um dos seus olhos de vidro: “este momento pode ser este aqui, agora, não?”

Quando estava saindo um deles disse: “Professora, foi um papo tão bom que a gente até esqueceu que tá preso.”

Professora, o que é lirismo?...Qual é mesmo a diferença entre poesia e..e...como é mesmo o nome daquela...”  Prosa?, digo eu. É preciso falar das coisas mais complexas sim, mas de modo simples - dois internos com segundo grau completo, vários com primeiro, dois com dois anos de estudo e um alemão com curso superior, poliglota, culto, que se expressa perfeitamente em português oral e escrito.

O Alemão, natural de Berlim Oriental, filho espiritual de Marx e Lenin, havia estudado na URSS e trabalhado para o Serviço Secreto da RDA; com a unificação e a queda do muro seu mundo caíra – com vinte e dois anos, tentou alguns empreendimentos que não deram certo e acabou traficando droga para conseguir se “destacar no mundo capitalista”.

Conversei sobre o conceito de “escritura”, que o importante ali, naquele laboratório, era que eles refletissem, se expressassem e produzissem textos, não precisavam se ater ao conceito tradicional de poesia, a gêneros.

Desmistifiquei o conceito de “erro” quando se trata de literatura e um deles disse: “Entendi, professora. Posso então escrever como se tivesse falando comigo?”

Um dia, ao chegar ao presídio, vira uma concentração de carros de tropas de choque da PATAMO. Pensei em rebelião, mas era apenas operação de rotina. Olhando os policiais e os internos me perguntava sobre o que será que define, afinal, rapazes oriundos aparentemente de uma mesma classe social se definirem pelo crime ou pelo serviço à lei.

Tudo se apresentava como fronteiriço, sem respostas fixas, um entrelaçamento de motivos, explicações, os mil véus da realidade. Neste mesmo dia li alguns parágrafos do primeiro volume de Em busca do Tempo Perdido, de Marcel Proust.

Os sentimentos do sofisticado narrador francês, narrando com delicadeza suas lembranças, comentando sobre os diferentes quartos que conhecera, chegava até os prisioneiros - a memória, suas cores, cheiros e gostos é patrimônio de todos, como a nostalgia.

No encontro seguinte há muitas interrupções, muito barulho, os internos sendo chamados por um motivo ou outro.  Um deles diz, em um poema, que é sempre assim: “Os barulhos de vozes\ estão em todos os lados\ são vozes capazes de deixar qualquer um louco.”

Num determinado momento, falo com um dos guardas e pergunto se poderiam parar com as interrupções. Minha turma ri, dizem que sou forte e me chamam de Schwarzenegger “Se isso acontecesse mais frequentemente esses caras iam ser menos ignorantes”, diz um deles.

A partir de um pequeno apontamento de Fernando Pessoa conversamos sobre o “estado de alma [como] uma paisagem”, paisagens interiores e exteriores, o mundo “real”, territórios, possibilidades de voo e abstração em qualquer espaço, a sutil interação entre o exterior e o interior.

Curiosamente, na aula seguinte, venho vestindo uma blusa cor de uva - ou cor da buganvila rosa avermelhada - e causo uma enorme reação, comentários que não entendo, até que me explicam: é que a cor da sua blusa é a das nossas duas árvores (foto).



Aos passarem por um corredor, em determinada época do ano, os presos podiam ver, esticando o pescoço, através de uma pequena janela alta, duas árvores que coloriam o cerrado, flores da cor da minha blusa.

Em uma ocasião leio trechos selecionados do que cada um escrevera sobre si, sem nomeá-los. Após a leitura, pergunto se posso identificar os autores - sim, sem problema. Vejo o contentamento deles com o que pode ser chamado de “autoria”, o ser reconhecido em algo positivo.

Peço que escrevam um texto, em prosa ou poesia, fora da sala de aula, gostaria de comparar, de algum modo, com os escritos no grupo. Resistem.

Para estimulá-los distribuo cópias do Poema em Linha Reta, de Álvaro de Campos, lemos, conversamos sobre os heterônimos de Pessoa e sobre o que diz o poema, sintetizado nos dois versos iniciais: “Nunca conheci quem tivesse levado porrada.\ Todos os meus conhecidos são campeões em tudo.”

Identificam-se de imediato com o eu que desabafa no poema sobre seu ser “vil”, “ridículo”, “grotesco” que diz: “Arre, estou farto de semideuses! \ Onde é que há gente no mundo?”

Em uma das “aulas” proponho que falemos sobre violência, sobre o conceito do Mal. Há muita resistência. Trago pequenos textos sobre o assunto, as dúvidas de linguagem são esclarecidas, mas o tema incomoda.

Peço que nos vinte minutos finais escrevam sobre “o que eu entendo por violência”. Mal-estar geral. Dois deles são mais resistentes e escrevem apenas uma frase, uma delas: “O que eu entendo por violência? Eu não entendo nada.”

Converso com um dos que tem maior dificuldade e ele me diz estar muito nervoso com a perspectiva da saída, não quer “sair daqui assim”, estourado.

Pergunto se ele foi preso por ato violento – não, só um assalto. Ele comenta um texto meu sobre a dificuldade do criminoso em entender a dor do outro dizendo que “é isto mesmo”, ele passou a entender essa dor na prisão; pede que eu lhe consiga algo para ler que trate de “relações públicas”, precisa se preparar “pra voltar pro mundo”.

Um outro interno escreve: “Eu vim parar neste lugar foi porque eu acreditava num mundo de ilusão, onde eu queria ser uma pessoa que não era. Quando eu acordei vi que era tarde demais, eu agradeço por ter acordado.”

Alemão, em um de seus textos, escreve: “Sou radical, não gosto da violência relacionada à ganância ou ao orgulho, mas tolero e apoio a violência revolucionária, libertadora, executada pela maioria em benefício da maioria do povo.”

Nos dez minutos finais, conto a eles que, ao me aproximar da Papuda, naquele dia, eu a vira como um animal de concreto. Qual seria esse bicho para eles? As associações são: polvo, cupinzeiro, formigueiro e, o que muito me surpreende, uma baleia azul. Peço que elaborem tudo isso e continuem a escrever sobre o tema, na forma que preferirem.

Penso na baleia, em Jonas, no que outros dois disseram sobre estar na prisão – um deles disse saber que só se livraria da cocaína na cadeia, outro me conta que foi lá que se aproximou de Deus. Ao término de cada dia eu saia com novas perguntas.

Em uma ocasião, um dos internos chega com o bigode raspado, eu lhe digo que fica bem sem bigode e ele responde que a família não notou nada.

Outro chega melhor vestido, com cabelo cortado, também elogio. Neste dia lhes apresento um poema de Li Po ou Li Pai, poeta chinês do século VIII: “Em frente do meu leito há um brilho intenso.\ Será que já começou a gear?\ Levanto-me para olhar e me dou conta de que é o luar.\ Baixo a cabeça de novo e começo a pensar na terra natal.”

A mãe, o pai, os filhos ou a ausência deles é matéria recorrente nos escritos, nos poemas, nas conversas, nenhum deles se refere a uma infância “normal”. Esqueço-me que estou por trás das grades com doze homens que cometeram todo tipo de delito. Não nasci para julgar.

Escreveram também sobre o amor. Um dos poemas diz: “O amor é: vendas\ olhos abertos\ amarras que quebram\ o enlace.\ É assumir, mesmo em momento efêmero [...] o amor é germinação.”

Tive alguns poemas dedicados a mim, um deles criando bela e original imagem: “[..] rosto limpo como uma camisa branca\ quero poder te ver como o sol\ que aparece todos os dias.”

Aos poucos ia sentindo o quanto estava significando para aquele grupo o diálogo comigo, a escuta sem preconceitos. Esse sentimento explodiu um dia no carro, quando vi o bicho Papuda e fui acometida de violenta crise de choro. O que eu poderia realmente fazer por eles? Nada.

Nada além de dar-lhes atenção por um breve, brevíssimo intervalo, de estimular algo neles que nem mesmo sabia se seria válido estimular. Todas as dúvidas me perseguiam e não controlava o choro. Aquele dia a aula começou com atraso.

Estávamos já pensando na festa de encerramento do projeto, perguntei aos meus internos se poderiam contar alguma memória afetiva com relação a comida, doces. Todos reagiram rápido. O bolo que encomendei sintetizava essas memórias e necessitaria de côco, ameixa, doce de leite, chocolate, doce de ovos, merengue e morangos - um esforço conseguir que os Biscoitos Mineiros fizessem algo que não existia no cardápio, “um exagero”, segundo a atendente. Sim, um exagero era o que eu queria.

A vivência nessa penitenciária, por um período de dois meses, foi tão intensa que removi da consciência o mais que pude aqueles presos. Hoje, dezoito anos depois, talvez devido ao tema da crise penitenciária estar acrescido ao encarceramento de população de elite, que não conhecia essa possibilidade, fizeram com que eu fosse procurar o material que ficara guardado tantos anos.

O corpo é nossa primeira prisão mas pode também ser instrumento de liberdade. Demasiado utópico imaginar os presos recebendo aulas sobre técnicas de meditação? Naquelas tardes na Papuda, imersa num universo absolutamente outro, convivi com o impensável e tive a confirmação do quanto é possível comunicar-se com qualquer pessoa desde que se acredite na ponte que é a linguagem, a fala, que se percorra seus caminhos e descaminhos com a mente aberta.

Nada mais soube daqueles homens tão gentis comigo. Tampouco sei se o circuito interno de TV veio a funcionar ou não, se eles mostraram suas histórias. Poucos meses depois do término do Laboratório parti para a China por cinco anos – lá, um novo aprendizado sobre a comunicação.

Assassinos, ladrões, traficantes, meliantes de todo tipo tinham, no entanto, uma qualidade cada vez mais rara: expunham, de algum modo, a sua verdade. Hoje, atolados de narrativas que só nos mostram o caráter fluido e questionável da verdade, penso que muitos deles tenham sido penalizados em excesso. O que é a Justiça? O que é a justiça num país como o nosso? O que vejo me assusta – estaremos numa sociedade onde todos são culpados?

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