Maria Lucia Verdi -
Refletindo sobre lucidez e loucura, sobre o que Lacan diz quando afirma que os deuses pertencem ao real, enquanto espero uma amiga na – mítica para os brasilienses – Av. W3, escutei uma conversa entre dois moradores de rua, ambos velhos, barbudos, com olhos tremendos. A conversa foi mais ou menos assim:
- Está difícil né?
- Mais que difícil, meu filho, dificílimo.
- Mas o senhor está se sentindo bem?
- Eu estou é cansado. Há anos observando isso aqui e não tem jeito...
- Isso aqui... a que o senhor se refere exatamente... me diga...
- À vida, meu filho, mas eu vou lhe falar. Você vai ser a primeira pessoa para quem eu vou me revelar. Isso tudo me pesa demais... O que eu fiz deu tudo errado.
- O senhor pode ser mais claro?
- Estou tentando tomar coragem. Agora eu preciso agir, preciso. E escolhi o senhor para ser o primeiro a quem vou contar.
- Eu ser o primeiro para quê? Do que que o senhor está falando? Me desculpe...
- Meu filho, é que, é que... eu sou Deus. Sei que isso parece coisa de maluco, mas é simples assim, eu sou Deus... Eu falo isso quase com vergonha, não me gabo... Olha só o sofrimento por todo lado, o horror...Deu tudo errado.
- Ah! O senhor é deus. Entendo, entendo. Mas será que deu tudo errado mesmo? A natureza é uma beleza, cada criança, cada flor, cada animal renovam a esperança... e o céu lá nos lembrando do nosso tamanho... Não deu tudo errado.
- O senhor acha mesmo? E o que os homens estão fazendo com as crianças, com a natureza? Há um tempo estou na terra, sabe? Resolvi encarar e vir eu mesmo, não só meu filho, coitado. Porque está muito sério tudo e afinal eu sou o pai. Vim, virei juiz, solteirão, católico, tentando fazer alguma coisa, mas...
- Sei, estou entendendo. Eu concordo, também acho que está tudo errado, por isto resolvi viver assim, perambulando. O que me distrai é o movimento das ruas, observar essa gente toda indo atrás de alguma coisa.
- Vir morar por aí, viver debaixo as estrelas. O senhor é um puro. Não tem mais gente assim não. Por isto posso lhe confessar - não sei por onde começar a tentar essa salvação.
- Talvez voltar com a palavra de deus, a sua palavra, não? E ver se as pessoas conseguem escutar, escutar de verdade.
- Eu preciso me misturar com quem talvez escute, os excluídos, os que estão fora de tudo, sem-terra, sem nada, os que estão no abismo da miséria, mas não por escolha, como o senhor.
- Acho que dá até pra dizer: os que não existem, não é? É, pode ser que dali ainda possa surgir alguma coisa, do nada.
- Tem que ser, tem de ser... Tentar outro tipo de criação.
- Acho que o senhor está mesmo começando a pensar como deus.
- Quem sabe o senhor me ajuda?
- Desculpe, eu não consigo... Mas apoio a sua decisão, tente de novo sim. Só que eu não consigo ser apóstolo, nem do senhor nem de ninguém, me desculpe, estou... estou fora do reino dele... E eu vou indo.
Acho que cabe aqui citar um trecho de Hegel mencionado pelo polêmico Slavoj Zizek no seu “Acontecimento – uma viagem filosófica através de um conceito”. Lembra Zizek que Hegel vê a loucura como uma retirada do mundo real, “o fechamento da alma em si mesma” e aproximação dela à “alma animal”, cito Hegel via o pensador esloveno: “O ser humano é essa noite, esse nada vazio, que contém tudo em sua simplicidade – uma riqueza infinita de representações, de imagens, das quais nenhuma lhe pertence – ou que não estão presentes. Essa noite, a interioridade da Natureza que existe aqui – o Eu puro – em representações fantasmagóricas, é noite à sua volta; surge então uma cabeça ensanguentada aqui – mais adiante, outra aparição branca, e elas desaparecem também de repente. É essa noite que se percebe quando se olha um ser humano bem nos olhos: uma noite que se torna terrível”.