Maria Lucia Verdi -
Nesta última semana, para conseguir respirar, tenho revisto - bem como visto alguns pela primeira vez - filmes de Michelangelo Antonioni na mostra retrospectiva em cartaz no CCBB.
Observar a trajetória do grande italiano, a permanência de certas escolhas estéticas e temáticas e suas transformações formais e discursivas, quando simultaneamente testemunho o interminável desdobrar das histórias ligadas às narrativas das delações é algo curioso, para dizer o mínimo.
Antonioni só desvela o velamento das coisas e dos seres.
Não há verdades, o sentido de tudo é aberto, mutante, as narrativas dramáticas são quase mínimas e revelam, sempre, a incerteza de tudo, a impossibilidade de uma versão definitiva.
Cineasta e cronista de seu tempo por mais de seis décadas, verdadeiro pintor que deixa em cada filme alguma imagem (quadro) inesquecível, é um observador cético do teatro do humano.
Quais são os motivos, o que aconteceu ou acontecerá numa trama, importa e não importa frente aos magníficos retratos do homem em situação frente a si mesmo e ao outro.
Porém aqui, agora, neste impensável roteiro que, não obstante, tem de fato lugar no palco exausto que é nossa terra, busca-se entender motivos, desvendar ações, esclarecer situações que permanecem envoltas numa densa névoa, como aquela presente em tantos dos filmes do Maestro.
Como nas tragédias shakespearianas, em nosso palco, um golpe dentro de um golpe, uma cena patética superando a outra, o desesperador sentido de que é sem fim, sem fundo, interminável o circo de horrores que se projeta.
“Sei da correção dos meus atos”, disse aquele que se nega a renunciar. Desde Maquiavel se sabe que verdade e política não andam juntas, o Príncipe tendo o direito de mentir.
Mas não mentir assim. Evidencia-se que no ethos brasileiro deixou de existir – se em algum momento existiu – algo que se nomeava como a Ética.
Retornamos ao sempre recorrente Macunaíma, o qual, ao ser perguntado sobre algo que havia dito ou feito, respondia de modo malandro, falsamente ingênuo: “Eu menti”. Engano, falsidade, fraude, embuste, impostura por todos os lados.
Sentimos o desespero que muitos dos personagens de Antonioni expressam frente a um mundo onde a falsidade burguesa, a falta de valores, o vazio da existência, imperam soberanos.
Tantos deles desistem, suicidam-se, deixam-se morrer em vida, matam alguém.
Quando Polonius pergunta a Hamlet o que ele lê, ouve a resposta: “Palavras, palavras, palavras...”
O que lemos e ouvimos parecem ser apenas palavras destituídas de sentido, destituídas de qualquer verdade, como em tantas cenas dos filmes de Antonioni. A construção babélica de depoimentos, provas, falas, se transforma num enorme, monstruoso moinho de vento. Qual é a luta possível?
É preciso identificá-la. Não será ela a mudança de uma constituição que, em 1988, não poderia prever o caos que se instalaria no país?
Uma votação da urgente reforma política e a possibilidade de renovarmos os quadros políticos por meio de eleições diretas?
No ótimo catálogo da “Aventura Antonioni”, em uma das entrevistas com o cineasta, ele cita Lucrécio: “Nada se parece consigo mesmo neste mundo onde nada é estável.
De estável há somente uma violência que subverte tudo." Essa violência que subverte tudo, que parece ter sempre existido, se reinventa com tal maestria em nosso pobre país que resistimos com dificuldade, com dor.
Essa violência é a violência de uma sociedade que nunca conseguiu resolver questões intestinais, que não conseguirá transformar-se enquanto não houver uma profunda revolução em sua estrutura.
E tal revolução pode estar vindo à tona.