"A vida é de quem se atreve a viver".


Zweig: ""Aqueles que anunciam que lutam a favor de Deus são sempre os homens menos pacíficos da terra. Como crêem receber mensagens celestiais, têm os ouvidos surdos a qualquer palavra de humanidade".
Stefan Zweig, o Brasil de ontem e de hoje, e o cansaço de ser - III (Final)

Maria Lúcia Verdi -

Com este terceiro capítulo, encerro meus comentários sobre a vida e obra do escritor austríaco Stefan Zweig.

"Aqueles que anunciam que lutam a favor de Deus são sempre os homens menos pacíficos da terra. Como crêem receber mensagens celestiais, têm os ouvidos surdos a qualquer palavra de humanidade". Stefan Zweig

Em São Paulo, Stefan Zweig visita o Museu do Ipiranga, o Butantã e a Penitenciária. Tendo em vista a atual crise carcerária, é duro lermos a boa impressão obtida no então presídio-modelo: “Todo o pendor para uma atividade artística é favorecido pelos dirigentes, o estabelecimento tem uma orquestra e vários penitenciários aprendem a pintar e a desenhar”.

Mas, claro, nos perguntamos se podemos confiar nesse narrador mediador.

Quando menciona aqui sentir um “outro sentimento do tempo”, menos tenso e competitivo, fala a partir da nostalgia de um mundo que acabou, não percebendo o que esse lírico anacronismo significa para a organização da sociedade brasileira.

Diz ser o Brasil de então “uma boa terra para pessoas idosas que já viram muita coisa desse mundo e desejam silêncio e vida retirada numa paisagem bonita e tranquila, a fim de meditarem em tudo o que viveram e aproveitaram”.

É isto o que Zweig e sua mulher Lotte fazem em Petrópolis, distantes do convívio e da vida social, tal isolamento tendo contribuído para a decisão final de quem tinha privado do convívio com as grandes inteligências do seu tempo.

Em 1942 Getúlio proíbe que se fale alemão no país. O sentimento de alteridade em relação ao seu entorno, a condição inexpugnável de judeu errante alemão que se acirra, as notícias que chegam sobre a intensificação do pesadelo alemão o impedem de seguir vivendo:

Não podemos negar que foi nossa pátria que levou esses horrores ao mundo... Se um escritor pode deixar o próprio país, não pode, porém, desvincular-se da língua com que foi criado e com que pensa. Foi nesta língua que por toda vida lutamos contra a autoglorificação do nacionalismo, e é ela a única arma que nos resta para continuar a lutar contra o espírito criminoso e malfeitor que destrói o mundo e lança a dignidade do homem à lama”.

Numa passagem do livro, o autor conta que, em São Paulo, no Butantã, havia tomado nas mãos, fascinado, um “frasco de tamanho médio” que continha o veneno de oitenta mil serpentes concentrados em “pequenos cristais esbranquiçados” (...) “...nunca vira e tivera eu nas mãos a morte em forma tão concentrada como o instante em que segurei esse frasco frio e frágil.”

Curiosamente, compara o poder aniquilador do frasco de veneno de cobras a “um milagre maior do que o dos contos de As mil e uma noites”.

Ao ler essa passagem é inevitável lembrar do frasco de Veronal que conterá as pílulas com que se suicida em 22 de fevereiro de 1942, durante o carnaval.

A asmática e frágil Lotte toma veneno de rato e se deita ao lado do marido e chefe morto (ela tinha sido secretária de Zweig).

Nas cartas que envia aos amigos e na que agradece ao Brasil e ao povo brasileiro está “aliviado” com sua decisão pelo suicídio, diz-se “demasiado impaciente” para aguardar o eventual fim do pesadelo europeu.

Na carta para sua primeira mulher, a escritora Friderike Von Winsternit, companheira intelectual por muitos anos, explica a decisão mencionando solidão e falta dos livros.

Homem do século dezenove, apesar de seu amor à reflexão e à psicanálise – era amigo pessoal de Freud, de quem escreve o elogio fúnebre - não suporta a realidade desesperançada.

Como vários de seus personagens, e muitos de seus amigos, busca a solução que já havia mencionado em seu diário, solução que, para a psicanálise, pertence aos fortes.

Como escrevera na biografia sobre Tolstói, ao interpretar a drástica mudança na vida do grande russo e explicá-la pelo conhecimento radical e devastador do Nada, seu destino fez com que também vivenciasse o Nada e o cansaço de ser.

Como Freud, percebe a preponderância dos instintos sobre a barbárie – com tal consciência, para que viver mais?

Os ideais pacifistas de Zweig, sua crença na importância de uma Europa unida, só vieram a ver a luz muitas décadas depois, com a criação da - como tudo, hoje em crise - União Europeia.
 
O presente – o dele, o do Brasil que retratara e o nosso - talvez seja desvendável unicamente através de lentes ainda não completamente forjadas.

(Fim)

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