"A vida é de quem se atreve a viver".


Zweig: “...nada é tão típico do brasileiro quanto o fato de ser ele um ente humano sem história...”.
Stefan Zweig, o Brasil de ontem e de hoje, e o cansaço de ser - II

Maria Lúcia Verdi -

Hoje, no Capítulo II desta série, comento outros aspectos da vida e obra do escritor austríaco Stefan Zweig, que suicidou-se em Petrópolis (RJ), em 1942. Biografia que também foi tratada no filme "Adeus, Europa", de Maria Schrader.

Compreender a história de uma ex-colônia construída por uma classe dirigente em cima de cemitérios indígenas (Airton Krenaki) e de uma dolorosa diáspora africana, era um desafio grande demais para quem que vivera no seio de uma família riquíssima, no bojo do império austro-húngaro.

De fato, obras como as dos irmãos Villas-Boas, Berta e Darcy Ribeiro, Florestan Fernandes, Manuela Carneiro da Cunha e mesmo “Tristes Trópicos” são posteriores a 1940, mas Stefan Zweig poderia ter se informado sobre José Bonifácio, Capistrano de Abreu, Curt Nimuendaju, entre alguns outros.

Talvez um de seus pecados tenha sido relacionar-se quase exclusivamente com a elite brasileira, seus pares.

Em sua autobiografia, se refere ao mundo que vira na Europa como harmonioso, tolerante, cordial, calmo, perseverante, polido e gentil e, sintomaticamente, usa os mesmos adjetivos ao falar do conflituoso Brasil do Estado Novo.

Entre 1938 e 40, quando escreve o “País do futuro”, o Modernismo havia ocorrido há mais de uma década e as grandes interpretações sobre o Brasil já estavam publicadas.

Embora não soubesse português, sabia espanhol, caso não estivesse deprimido poderia ter buscado uma visão mais abrangente.

Perceber o Brasil de então apenas como “calmo, tolerante” é não compreender corretamente os conflitos sociais, as marcas da escravidão, os abusos de poder, o patriarcalismo aviltante, o autoritarismo, as mazelas de uma sociedade contraditória, até hoje liberal e escravagista.

O humanista comprometido, o incansável pacifista, viajando pelo mundo desde 1934, deixando-se embalar por uma ideia de Brasil desde quando o visitou pela primeira vez, em 36, aqui julgando viver “um povo único e livre”.

Uma terra que, em suas palavras - pensando em seu povo perseguido e sempre errante -“faria a felicidade de tantos refugiados”.

Havia deixado um mundo por onde andara sem passaporte, um mundo da cultura e da esperança destruído pelas guerras e imagina reencontrá-lo nesse Brasil, rítmico cadinho de raças e de cores.

Vítima das teorias de seu tempo, assim como Euclides da Cunha, escreve:

“A raça brasileira, que, por uma importação de negros durante três séculos, está ameaçada de se tornar cada vez mais escura, cada vez mais africana, clareia visivelmente, e o elemento europeu, em oposição ao elemento primitivamente crescente, de escravos analfabetos, eleva o nível geral da civilização.”

Desconhece, também, as dificuldades enormes enfrentadas pelos imigrantes, seja pela mal estruturada política de imigração, seja pelas dificuldades de adaptação aos trópicos.

Encontramos trechos como: “...nada é tão típico do brasileiro quanto o fato de ser ele um ente humano sem história...”.

Reconhece as inegáveis qualidades do país e de seu povo, prevê acontecimentos relacionados às riquezas naturais da terra, mas não consegue observar claramente as idiossincrasias brasileiras.

Tampouco intui o que se processava no Brasil e na América Latina, nos anos trinta, com relação ao que vem a ser apontado pelos estudos pós-coloniais.

Não se conecta com o que Antonio Candido chama de “atmosfera de fervor” dos anos trinta, no que se refere ao “engajamento político, religioso e social no campo da cultura”, em “A revolução de 1930 e a cultura”. É difícil ver o presente, como ele uma vez remarcara.

Pouco percebeu da produção cultural e artística, até mesmo Aleijadinho, em sua peculiar expressão, o confunde - examina-o apenas por padrões europeus. Escreve: “... (não existem) religião originariamente brasileira, música brasileira antiga, não existem lendas populares conservadas através dos séculos e nem mesmo os modestos inícios de uma profissão artística.” Apenas Carlos Gomes e Villa Lobos.

Zweig não foi sensível ao grande samba que lhe estaria próximo, caso estendesse o ouvido, nem às lendas populares que poderia ter conhecido por relatos orais. Cita Machado de Assis superficialmente, analisa o óbvio em Alencar (o índio europeizado), lembra alguns poetas árcades, cita Rui Barbosa.

Quando descreve o Mangue, a beleza das raças misturadas e as ruas antigas, não faz referência às mulatas de Di Cavalcanti ou a Lasar Segall, mas sim a Rembrandt, que, segundo ele, poderia tão bem tê-las retratado num “clair obscur”.

Pelas ruas vê Cézanne, Van Gogh, nunca Portinari. A miscigenação o encanta, a confluência de culturas, e nelas vê um dos grandes trunfos do país, em oposição ao horror do arianismo.

Afirma que “Aspirações à emancipação ou feminismo ainda não encontraram terreno aqui”, o que, embora, em geral, correspondesse à verdade, elimina personagens da história do Brasil, como Xica da Silva, Chiquinha Gonzaga, Pagu, Anita Malfatti, Tarsila do Amaral, para citar as mais relevantes.

Zweig, na verdade, quer rever\reviver um mundo, voltar a sentir emoções que sentira na infância, na sua “Europa da esperança”: “ Aqui havia colorido e movimento; os olhos não se cansavam de olhar e, para onde quer que os dirigisse, sentia-me feliz.

Apoderou-se de mim uma ebriedade de beleza e de gozo que excitava os sentidos, estimulava os nervos, dilatava o coração e, por mais que eu visse, ainda queria ver mais.

”“Brasil, país do futuro” é uma apaixonada história romanceada, mas pouco confiável - nas palavras de Afrânio Peixoto, “o mais favorecido dos retratos do Brasil. ”

Mas Zweig acerta em algumas percepções da psicologia do brasileiro, cada vez mais comprovadas: “O brasileiro, por natureza, não é radical, nem revolucionário”.

Grande intérpretes de almas, tendo-as estudado seja nas excelentes e variadas biografias que produz, seja em novelas eminentemente psicológicas, se não avalia bem nossa História, bem interpreta o espírito brasileiro daquele tempo.

Ao se referir ao Brasil que luta pela independência de Portugal comenta algo que, hoje em dia, soa com uma dura ironia do destino da Nação: “... com mão leve e hábil ainda seria possível sem dificuldade, conservar a posse do país”.

Certos comentários sobre o caráter dos brasileiros do final dos anos 30 e início dos quarenta reiteram uma perda dolorosa, uma grande mudança no ethos nacional:

É raro ouvir alguém falar alto ou dirigir-se a outra pessoa encolerizado, aos gritos. (...). Mesmo quando se divertem em massas, as pessoas aqui se conservam calmas e discretas, e essa ausência de tudo o que é forte e brutal, dá à sua alegria suave um delicioso encanto(...). Tudo o que é brutal repugna ao brasileiro, está verificado por estatística que o assassínio quase nunca é praticado com premeditação, é quase sempre espontâneo, é um crime passional... Crimes ligados à astúcia, cálculo, rapacidade e perversidade são muito raros”.  Tristeza.

(Continuação amanhã - Capítulo III)

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