Entrevista de Maria Lúcia Verdi com a artista Teresa Poester
Teresa Poester e eu somos amigas desde crianças, é quase uma irmã, e a entrevista a seguir reflete isto. Admiradora do trabalho dela como artista e professora resolvi entrevistá-la, sobretudo movida pela emoção frente à publicação de um belo livro sobre sua obra, que por hora está disponível em formato ebook (veja aqui), publicado pela Editora da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), no âmbito do projeto Percurso do Artista, do qual ela é a primeira mulher a ser contemplada e pelo qual ganhou o Prêmio Açorianos.
O livro reúne a síntese mais completa da trajetória de Teresa e é feito em co-relação com a mostra Até que meus dedos sangrem, realizada, entre 2019/2020, no Sala João Fahrion, o espaço expositivo da Reitoria da UFRGS, instituição da qual se aposentou como professora do Instituto de Arte e formou alunos durante vinte anos.
Vivendo entre o Brasil e a França desde 1998, Teresa Poester centra sua produção no desenho e no desenho aliado a outras práticas tais como pintura, fotografia, vídeo, instalação, performance, vídeo performance, vídeo animação, ilustração e cenografia.
Tenho o prazer de apresentá-la aos leitores deste site e espero que os artistas que ainda não a conhecem possam descobrir essa instigante artista gaúcha.
Teresa, vamos começar falando do teu livro disponível em ebook Até que meus dedos sangrem e depois sobre a tua trajetória como artista gaúcha com residência na França. Disseram que a História havia acabado, que a pintura havia acabado, dizem que o livro está acabando, mas não é o que me parece... Como é para ti ter um livro sobre a tua produção, vindo ao público neste momento?
Pois é a Malu, no século XIX se dizia que a fotografia iria acabar com a pintura, que o cinema iria acabar com o teatro e assim por diante, mas a pintura se revigorou. Se hoje muitos jovens costumam ler por computador, ainda boa parte do público não prescinde do objeto livro, mesmo que ele tenda a se tornar peça rara, até pela crescente carência de papel. Essa tendência também é cultural, na Europa é mais difícil aderirem às novidades. Desistimos de fazer o lançamento do livro em ebook na França, mesmo com a edição sendo traduzida e ilustrada em francês, porque o pessoal aqui é refratário a edições virtuais. Mas, por outro lado, o fato de ter também esse livro em ebook torna-o mais democrático e acessível.
O convite para participar do projeto Percurso do Artista, que inclui uma exposição e um livro, marca coincidentemente o encerramento de minhas atividades como professora da UFRGS. Fui a primeira mulher a participar desse projeto, que homenageia artistas-professores do Instituto de Artes. O livro é o que fica. E este é um registro mais completo do que os catálogos anteriores. É também, a meu ver, um objeto artístico, realizado por uma equipe primorosa, coordenada minuciosamente por Eduardo Veras, organizador e também curador da exposição Até que meus dedos sangrem, que dá nome ao livro. Ele foi meu colega na UFRGS, conhece bem meu trabalho e o lugar onde vivo aqui e no Brasil, sua formação de jornalista, assim como a de Luísa Kiefer, que escreveu o artigo inicial, marca um texto fluido e elegante, sem resquícios acadêmicos.
Tua infância em Bagé, a topografia, o horizonte, as cores, os tipos humanos te influenciaram muito? Continuam a se mover em ti ou são só retratos na parede?
Tua pergunta me lembrou de quando, apresentada a um conterrâneo, brincou comigo perguntando: és de Bagé mesmo ou dizes só pra te exibir? Acho que o fato de ter vindo para Porto Alegre com 8 anos e ter sido uma criança solitária, infeliz mesmo, durante os dois primeiros anos no colégio alemão que frequentei, alheio às minhas raízes, acentuou um saudosismo sobre tudo do meu pátio de Bagé. Conhecia o pampa e a cultura dos gaúchos, silenciosos, acostumados a perder a vista nas lonjuras de uma terra plana, como eu acreditava ser quando pequena, achando que cairíamos no abismo ao transpor a linha reta que limitava o mundo.
Na cidade, via carroças e homens a cavalo de lenço, chapéu e bombacha. Mas só vim compreender o que isso significava, esse horizonte em terra, quando estudei a relação do homem e o ambiente, sobretudo depois de meu doutorado sobre a formação da paisagem na pintura e na abstração. Percebi que minhas pinturas de paisagens dos anos 1980 e 1990 tinham relação essa vivência de Bagé e uma certa nostalgia da infância que se aguçou com a idade, principalmente depois que conheci a planície do Vexin, na região onde moro na França, que se assemelha à paisagem do Pampa. E, como em geral trabalho sozinha, sobretudo neste tempo de isolamento, sou capaz de ficar muito tempo em silêncio, nessa paisagem em que avisto longe. Por isso gosto quando tenho oportunidade de falar. Em suma, essas memórias continuam a me mover, talvez também através de retratos na parede - até meus próprios desenhos na parede – se revigorem, assim como as colinas de Montmartre se revigoram pelas pinturas de Utrillo ou as vistas de Veneza pelas aquarelas de Turner. Aqui estou dentro de um quadro impressionista. A paisagem onde viva tem esse poder catalisador.
Me lembro de uma pintura tua, que ainda tenho em pôster, onde está escrito sobre a cara do personagem do Chaplin, o vagabundo, “Sempre se tem dezessete anos em alguma parte do coração”. A nossa juventude, a tua, inquieta, instigante, desafiadora, sofrida, foi o que te abriu para esse amor aos alunos, essa capacidade de estar com os jovens?
Sempre se tem 20 anos em algum canto.... Como, volver a los 17. Essa visão meio idílica da juventude talvez faça parte da necessidade de regeneração, de reiterar os bons momentos. Na minha juventude, tudo o que eu pensava não tinha eco no mundo ao meu redor, desde muito cedo. Não entendia o amor direcionado a um gênero definido, a uma cultura ou ao que fosse. Não encontrei amigos ou psiquiatras capazes de me compreender. Ao contrário. Isso foi nos anos 1970 e sabemos que somente em 1990 a OMS retirou a homossexualidade da classificação de doenças (CID). Os médicos eram instruídos a tentar “curar” o paciente para adaptá-lo a uma vida saudável. Isso teve consequências penosas para mim.
O fato de ter sobrevivido a essas consequências se deve, sobretudo, ao poder regenerador da arte. Apesar dos preconceitos ainda terríveis em vários países (e crescente no Brasil de hoje autorizados pelo obscurantismo no qual vivemos), conviver com jovens estudantes de arte me mostra o quanto o mundo mudou em relação às liberdades individuais. Os jovens me renovam as energias em muitos sentidos. Lembro de uma personagem professora de Simone de Beauvoir diante de alunos sempre com a mesma idade frente a ela que envelhecia a cada ano. Cria-se a ilusão de um tempo congelado. Um espelho que prolonga a juventude.
E poder continuar desenhando ajuda a manter o lado criança. Esse convite à liberdade que representa uma folha de papel branco. O Território da folha, como um poema teu que serviu de título a uma exposição minha de paisagens: O mundo inteiro ali, à espera.
Paisagens - 70x90cm - Porto Alegre 1991
Imagino que deva ser muito limitador ser figura pública, mas por outro lado reconheço que deve ser bom ser reconhecido e admirado. O que é melhor, Teresa, ser amada ou ser admirada? Será que são coisas distintas? Acho que preciso admirar para amar.
Com a hiper exposição da vida privada nas redes e tal, muitas figuras se tornam públicas rapidamente. Percebo muita solidão nisso tudo. No meu caso, experimento algum reconhecimento na minha área em um determinado lugar, mas há muitos anos vivendo parte do tempo no exterior, na Espanha e na França, onde tenho poucos amigos e poucos me conhecem, experimento um sentimento de anonimato que me é muito confortável. Fernando Pessoa tem uma frase bonita quando compara a beleza do Tejo ao rio desconhecido que passa por sua aldeia: E por isso, porque pertence a menos gente, é mais livre e maior o rio da minha aldeia.
Agora com o confinamento estamos mais e mais carentes. Sem dúvida, precisamos ser amados e, sobretudo, aprender a amar. É um aprendizado diário. Amor e admiração são indissociáveis, raros e difíceis.
Neruda disse numa entrevista à Clarice, que não conhecia bem nem o sentimento de angústia, nem o do estado de graça. O que você pode me dizer disso? Eu acho estranho que um poeta, um artista, diga não conhecer dois sentimentos que para mim são inerentes à criação - angústia e epifania.
Quando crianças, gostávamos de criar histórias dramáticas com sentimentos mais inventados do que vividos, ou, talvez, já pressentidos. Mais tarde vivi momentos de angústia intensa. E foram os momentos de graça, ou a lembrança deles, que me impediram de afundar. Na nossa adolescência, lendo Camus, percebi que a vida é uma opção e, se assumimos essa escolha, nos tornamos responsáveis por ela. Hoje, quando a mentalidade do Brasil demonstra tal grau de vulgaridade e decadência, se não nos apegarmos à vida, fica difícil resistir.
A felicidade e as inquietações são parte da criação. Mas as surpresas, os achados, são os momentos de graça que seguram as angústias.
Como é viver entre dois países, duas cidades, duas casas, duas línguas? Como tu, vivi muito fora do Brasil, mas não com o sentimento de, de fato, ter duas “existências” em lugares distintos. Sabia que era provisório, intervalar. É aflitivo, consola ou é simplesmente algo já naturalizado estar entre a França e o Brasil?
Aqui em Eragny sur Epte tenho casa, ateliê, e amigos em Paris. Mas minhas raízes estão bem ancoradas no Brasil, família, casa e amigos antigos. Quando estou aqui, é como se minha segunda casa fosse em Porto Alegre. Quando volto, levo um tempo pra chegar. De qualquer forma, como vivo há 23 anos com minha companheira que é francesa, isso já me coloca entre duas culturas. No Brasil moro numa cidade grande, Porto Alegre, e aqui, embora a uma hora de Paris, é campo. Morei alguns anos em Paris e achava que nunca iria me habituar aqui, mas agora não trocaria. Sempre gostei de morar na Europa, de certa confiança que ainda existe nas pessoas, sobretudo nas cidades menores. Mas é bom saber que tenho meu canto no Brasil e, quando estou lá, da mesma forma, saber que tenho esse refúgio aqui.
Personagens - lápis grafitel, 100x60cm - Porto Alegre, 1982 (Foto: Artur Poester)
Como é, para ti, esse tema tão afirmado e negado que é o da inspiração. Confesso que adoro a inspiração, quando ela vem é uma benção...
Acho que o que me move hoje são desafios a partir do trabalho anterior, do que vivencio e de propostas que recebo. Por exemplo, estou fazendo agora um projeto visual para a Villa Savoy, de Le Corbusier, onde tenho de contracenar com a peça do coreógrafo que me convidou. É, em geral, a partir do espaço que me sinto motivada a criar, mas às vezes é também de um material ou de um tema. Nessa última exposição, a situação política no Brasil e o espaço físico foram o ponto de partida. Seja em Bagé ou em Bruxelas, sempre vou antes ao local, faço muitas fotos.
A vontade de criar está sempre latente, mas precisa de um empurrão. A inspiração vem de um problema visual a resolver. Mas, muitas vezes, o resultado é mais ou menos previsível. A benção, para mim, é quando há um achado que depende também do acaso. É quando experimento um estado de felicidade que só a criação proporciona. Mas além de criar, mostrar é importante. Se o trabalho que não é mostrado não se completa, não respira. Penso no porquê fazer e pra quem vou mostrar, como e onde vou mostrar. Essas coisas me movem, ou, usando tuas palavras, me inspiram.
Você acha que desenha, pinta, filma e faz seus demais trabalhos movidos por uma necessidade visceral, por uma certa intuição estética, ou como é? No meu caso, acho que escrevo como um diálogo com o que leio, uma vontade de diálogo com esses outros que estão fora e em mim, que absorvi quase antropofagicamente, mesmo quando isso não é evidente.
É claro que existe esse diálogo com o que vemos ou lemos, as músicas que escutamos. Há uma necessidade visceral e também uma tentativa de resposta estética ao que vejo nas grandes exposições ou catálogos e, principalmente, ao meu próprio processo, uma afirmação ou um contraponto ao trabalho anterior. E, sobretudo, à paisagem no meu entorno. Paradoxalmente, como se sabe, assim como a experiência e o conhecimento são fundamentais, também podem atrapalhar a criação. Arriscar sempre é o mais importante e o mais difícil, porque normalmente a criação vem parasitada por tudo que sabemos, por isso inventamos estratégias para impedir o movimento automático e previsível. Em 2012, criei o grupo Atelier D43, com alunos da UFRGS; em trabalhos coletivos, nos puxamos com elásticos, desenhamos com extensores longos e pesados ou através de uma tábua gráfica sobre sua projeção em papéis gigantescos. Esses trabalhos a várias mãos buscam sempre evitar o gesto automático e descobrir outras maneiras de desenhar.
Quanto ao absorver a cultura do outro, sim, quando a gente cria até o aparentemente espontâneo é condicionado pela cultura, e a cultura é a mistura com o que vem do outro. Sabes que trabalhei no antigo ateliê de Camille Pissarro a quatro mãos, com Dai Zheng, artista chinesa que conheceste em Pequim, e também com artistas franceses; os filmes feitos naquele ateliê, evidenciam a influência das diferentes culturas – no caso, a brasileira, a chinesa e a francesa - nos movimentos do corpo como instrumento do desenho. (Veja o vídeo aqui).
(Foto: Nelson Azevedo) Jardins de Eragny, lápis grafite - 150x150cm - Porto Alegre 2004
Iberê Camargo disse que só conseguia pintar quando conseguia esquecer o que aprendera. Para mim, pensando no exercício da escrita, o que mais me parece evidente é a intertextualidade entre o que escrevo e o que está escrito, seja pelos meus autores preferidos, seja por mim mesma anteriormente. Como é para ti a questão da busca, do perseguir algo, do alcançar algo. No teu trabalho tu achas que das figurações ao abstrato, há uma continuidade, uma síntese, uma conversa entre as diferentes fases que poderá, ainda, ir em outra direção?
Como falávamos, é extremamente paradoxal isso de esquecer o que o que sabe. Seria como pretender que o trabalho nascesse de uma espécie de geração espontânea. Para melhor compreender a obra de grandes artistas, e Iberê se incluiria aí, é fundamental entendermos suas influências. Certamente ele próprio, Guignard e tantos outros, não teriam pintado da mesma forma se não tivessem tido contato com a arte europeia e os mestres que os orientaram. Tudo nos influencia e não somos artistas acima de qualquer influência, ou cidadãos acima de qualquer suspeita, já que citamos Iberê...
No entanto, como disse anteriormente, tento criar estratégias para me surpreender com um novo gesto. Pois o desenho nada mais é do que o registro de um gesto, sua memória. Mas tenho consciência de que esse gesto carrega um conhecimento ancestral. Somos seres culturais e é bom também que sejamos. Os artistas jovens muitas vezes pensam descobrir a pólvora justamente por falta de conhecimento, de distanciamento. Nessa cultura da internet, o ontem já é descartável, passado. O que endossa essa sensação de geração espontânea.
Sobre a continuidade no meu percurso, um trabalho nasce como uma frustração do anterior. No portfólio do novo livro, cujo ebook que acaba de sair é o mote desta conversa, eu queria mostrar o desdobramento entre os períodos. Mas, figurativos ou abstratos, nunca foram desenhos ou pinturas realistas. A gestualidade, o tremor da mão na escrita do desenho, estão presentes talvez desde os primeiros trabalhos. E, depois dos anos noventa e de ter morado na Espanha, adquirindo mais vivências sobre pintura, eu queria trabalhar a linha no desenho de outra forma, não como um contorno da forma que rejeita a cor. A linha se tornou então um campo pictórico. Mas essas percepções nascem da prática. E o resultado é que vai embasando as ideias. Às vezes tudo se torna mais pensado do que eu gostaria. Mas o trabalho tem vida própria e segue seu rumo.
Clarice afirma que a criação não é uma compreensão, mas um novo mistério. Se por um lado concordo, também acredito que criar é uma compreensão. O que tu achas?
Concordo, mas, como tu, acho as duas coisas. E outras muitas! Como sabes, na visão oriental quem cria é a força cósmica que se manifesta através do artista e na noção mediúnica dos surrealistas, com o automatismo psíquico, o inconsciente criador é puro mistério. Quando experimento a sensação de não ter muito domínio sobre o que faço, de me deixar levar, há uma força no próprio trabalho que me leva por outros caminhos e, muitas vezes, surgem mais surpresas do que quando tenho um controle maior.
Compreender alguma coisa através da arte tem particularidades que incluem essa ideia de mistério como criadores e também como público. Por mais que tentemos racionalizar o gosto ou a emoção estética, sempre há uma parte do sensível, do irracional.
(Foto: Fernando Zago) - Instalação Grito Mudo - lápis de cor 7x3m - 2019
No mundo de hoje, hiper tecnológico e rapidíssimo sinto falta, e acho que tu também, da lentidão, de uma languidez preguiçosa, de receber e escrever cartas, de esperar respostas. Como estás vendo esse futuro que já está tão entre nós?
Pois é, fazemos parte de uma geração que viveu esse passado. Lembro de meu pai jogando xadrez por correspondência, esperando meses para receber o próximo lance. Nossa história também mostra essas mudanças. Tantas cartas que trocamos ao longo de décadas e, por outro lado, hoje, graças à comunicação instantânea, estamos próximas diariamente. Quando moramos longe do Brasil em outra época, telefonar era caríssimo, as cartas demoravam a vida. Hoje saímos e não saímos do Brasil. E, com o confinamento na pandemia, fez pouca diferença estar na França ou no Brasil.
Como professora, senti uma diferença enorme quando a internet substituiu, para muitos alunos, as pesquisas nos livros. Não há dúvida de que a enciclopédia virtual, abrangente e democrática, proporcionou grandes avanços na informação. Mas é complicado para um aluno de artes que nunca viu Van Gogh publicado, procurar o artista na internet da mesma forma como procura seu vizinho que desenha. Os alunos não percebem bem as diferenças. Cabe ao professor orientar-lhes, mostrar-lhes sites apropriados. Com a internet nem sempre cumprindo de forma confiável um papel informativo, a função do professor é, mais do que nunca, estimular a crítica e a reflexão.
Mas voltando à pergunta, esse futuro inimaginável há três anos, assusta sim. Sinto a angústia dos vírus que existem e dos que virão. Tenho medo de me acostumar nesse convívio virtual como vejo acontecer com certos jovens que não conheceram um tempo feito de outro tempo, com intimidade e profundidade nas relações. A tendência a me recolher no ateliê se acentuou com o confinamento, com a vida no campo e, principalmente, com a comunicação virtual. Sinto as consequências disso: leio menos, vou menos às salas de cinema, ao teatro, às exposições. Por outro lado, aqui tenho uma vida contemplativa em relação à natureza, às mudanças das estações, às relações com vizinhos ligados ao campo que me trazem outro tipo de aprendizagem.
Envelhecer traz muita coisa boa, somos tão mais serenas e compreensivas do que aquelas adolescentes feéricas do Instituto Nossa Senhora das Graças, das cônegas francesas de Santo Agostinho... Mas todo aquele ímpeto, todo aquele desejo de descobrir e aventurar-se faz falta, não faz?
Não sei se mais serena Malu, o que sinto é que aquele ímpeto muda porque nossa relação com o tempo muda. O tempo, antes abstrato, se torna concreto, tem um peso que aumenta e um tamanho que diminui dia a dia. Hoje, sentados num trem olhando para trás, vemos o caminho trilhado. A dimensão do tempo, se por um lado me dá certa tranquilidade, por outro, me traz ansiedade. Às vezes me propõem um trabalho pra mostrar daqui a 3 anos e penso que idade terei, se terei braços, coisas assim. O tempo, como o vento minuano de minha infância, vem de repente. Quero fazer tantas coisas. Mas não vejo essa inquietação como algo negativo, ao contrário, é o que me move.
E é claro que o tesão, o otimismo ou a ingenuidade da juventude fazem falta. Tem um poema de Ruy Espinheira Filho, poeta baiano de quem gosto muito, que diz algo assim: ....no tempo em que tudo viria, não como veio....viria luminoso e bom, como não veio. Mas, somando as boas e as difíceis vivências da juventude, sem dúvida, me sinto mais feliz hoje.
Há muitos anos Tom (Jobim) disse: “O Brasil, apesar de tudo, é um país de alma extremamente livre. Ele conduz à criação, ele é conivente com os grandes estados da alma”. O que diria o Tom frente a esse Brasil de hoje, Teresa?
Não sei o que o Tom diria na sua genialidade poética, mas estou certa de que sofreria vendo a fratura entre esse Brasil cantado em prosa em verso, que acreditávamos existir, e o que está aí. Esse país doente escolhido por uma enorme quantidade de pessoas que foram tudo, menos enganadas. Estamos vivendo a crônica de uma morte anunciada aos berros. Esse governo que debocha de seus cidadãos da forma mais violenta e vulgar fez aflorar uma realidade que não víamos, como um soco no estômago. Não há como voltarmos a nos iludir.
Houve uma fratura profunda não só no país, mas nas relações pessoais. Quando saí daí, percebi que não vivia no mesmo mundo de alguns amigos e amigas. Essas diferenças não se reduziam obviamente a opiniões políticas. Sabemos que o que houve no Brasil é inexplicável para qualquer pessoa de esquerda, centro ou direita, com a mínima noção de história ou de humanismo. Não sabemos o que dizer aqui. E acho que Tom tampouco saberia.