Maria Lúcia Verdi –
Ainda no Mês Internacional da Mulher, num março tão doloroso, a entrevistada é a professora e psicanalista Maria de Lourdes Teodoro. Com este depoimento, a ideia não é apenas homenagear a luta das mulheres, mas também estimular a resistência e a criatividade nas mulheres de todas as origens, todos os tipos e idades.
Lourdes Teodro é Doutora em Literatura Comparada pela Universidade de Paris III, com uma tese que relaciona a obra de Mário de Andrade à do poeta e ensaísta martiniquenho Aimé Césaire.
Nascida em Formosa (GO), Lourdes Teodoro, é também brasilense. Além de professora aposentada da UnB fez seu pós-doutorado em Arte e Psicanálise na Universidade de Harvard e foi pesquisadora do Instituto de Pesquisas e Estudos Afro-brasileiras (Ipeafro). É poeta e crítica literária.
Na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), coordenou o curso de "Conscientização da Cultura Afro-brasileira" criado por Abdias do Nascimento. Participou da fundação do Congresso Nacional Afro-Brasileiro, criado pelo poeta Eduardo de Oliveira.
A seguir, os principais trechos da entrevista:
Você se identifica mais com alguma das suas qualidades - a ativista guerreira contra o racismo; a observadora-ensaísta comprometida com os direitos humanos e a análise da inter-relação dos fenômenos culturais; a psicanalista ciente da função social da psicanálise; a literata-poeta atenta ao intercâmbio internacional das vozes e criações artísticas; a mãe e avó apaixonada – ou todas se equivalem?
Lourdes Teodoro – O gosto pelo silêncio, pela observação, a paixão pela vida – com liberdade de expressão e de movimento - me parecem ser elementos que unem essas minhas diversas trilhas, numa vida feita de desafios e adaptações. É a observação atenta que permite ver a interdependencia de fenômenos culturais que (nas Américas, na Ásia, na África, na Europa) promovem laços sociais ou impedem sua construção.
A psicanálise permite observar similitudes do funcionamento emocional, do bebê recem-nascido ao representante maior da República, pelo modo como respondemos aos estímulos internos ou externos. Sua metodologia de pesquisa, quando extendida para abordagem de fenômenos sociais, funciona melhor com a experiencia vivida da análise pessoal. De todo modo, essa área traz uma enorme contribuição para a compreensão de fenômenos sociais, por exemplo, o racismo (agressividade/insegurança) e a solidariedade (amor próprio/empatia). As pulsões de vida e de morte estão na base de nossos laços sociais: bebem em nossos “mitos” fundadores.
Tendo chegado a Brasília em 1958, você vivenciou uma utopia, um entusiasmo agora desfeito, estudou em lugares emblemáticos e participou de momentos fundamentais da vida educacional e cultural da cidade. Conte um pouco da sua percepção da Capital de antes e da de hoje.
A Capital foi inaugurada no mesmo dia e mês da execução de Joaquim José da Silva Xavier, o Tiradentes, herói da Inconfidência Mineira, 21 de abril de 1960. No final dessa década, Brasília já era uma cidade com cerca de 100 mil habitantes e já dava sinais de desigualdades sociais. Quem trabalhava no Centro ia se acomodando tão perto quanto possível, contruindo seus barracos, dentro do Plano Piloto, mas fora do plano urbanístico da cidade. Esses aglomerados eram chamados de Invasões. Criou-se uma Comissão de Erradicação das Invasões: CEI. A partir desta sigla a primeira grande cidade satélite inaugurada foi a Ceilândia, reunindo várias Invasões, com alguma infraestrutura, poucos espaços de lazer, esporte, teatros, cinemas, etc. Sem áreas verdes, parques, etc.
Mas, na década de 60, propriamente dita, viveu-se também, no Plano Piloto, a experiência de “equidade” no campo cultural, social, educacional. A educação em Brasília dos anos 60 era uma utopia particular: das Escolas Classe/Escola Parque até a Universidade. Houve vontade política e investimento na área. Os professores tinham bons salários, moravam bem, trabalhavam com criatividade e entusiasmo.
Na CASEB, ensino diurno, me lembro de estar entre estudantes filhas e filhos de operários, dómésticas, motoristas, parlamentares, jornalistas, médicos, advogados, etc. Talvez nos separassem conforme a letra da turma: A, B, C, D (riso interior), etc. Tínhamos uma Caderneta Escolar para marcar a frequência, mãe ou pai assinavam uma vez por mes essa caderneta. As duas primeiras páginas traziam o “Código de ética” elaborado por nós – os estudantes. Na época atual, em que a palavra feminicídio foi introduzida no cotidiano, vale lembrar, esse ítem, por via do qual a instituicão educava a juventude para conviver: “Sejamos cordiais com nossos colegas, para que possamos exigir deles idêntico tratamento. As moças merecem e nos exigem o mesmo digno comportamento que achamos devido a nossa irmã”. É claro que essa orientação estava em sintonia com o que recebíamos em casa.
Em 1960, nos mudamos da Candangolândia para a 708 Sul, que era o coração cultural de Brasília: Telefones, Correios, Jornais, Cine Cultura, Escolas, etc... Tanto na CASEB quanto no Elefante Branco, tinhamos aulas de língua estrangeira, para todos os alunos. Além das disciplinas curriculares havia os clubes de atividades: culinária, eletrônica, marcenaria, esporte, etc. No Elefante Branco, além do francês, havia inglês e além das ciências exatas (matemática, química, física, biologia), tínhamos filosofia, história, geografia, enfim as Humanas que educam, como a arte, nossa sensibilidade. Infelizmente, fazia-se opção entre exatas e humanas. Em 1967, a UnB já mostrava os impactos da ditatura. O que mais me entrisceu foi a decadência pós golpe de 1964. Alguns professores do elefante, sem preparo para o ensino universitário, vieram substituir os que se retiravam da UnB compulsória ou voluntariamente, por motivos políticos. Mas... tive o privilégio de estudar produção literária com o escritor Ciro dos Anjos, estudar língua portuguesa com o Antonio Salles, literatura com Cassiano Nunes e de estudar literatura francesa com professores franceses, na primeia turma dessa opção.
Na sua tese sobre “Modernismo brasileiro e negritude antilhana – Mário de Andrade e Aimé Césaire” Você trata de laços identitários pouco conhecidos entre nós. Poderia nos falar um pouco das principais ideias desse seu importante estudo?
Aqui, o ponto de partida foi a busca do não sabido: que país é este? Minha principal contribução se deve à leitura crítica que faço das obras escolhidas de Césaire e Mário. Meu preparo para essa leitura incluía a literatura de viagem, as teses de Gobineau, sociologia e antropologia brasileiras dos anos 30/40 etc. Tanto as personagens de Macunaíma – o herói sem nenhum caráter quanto as personagens das diversas peças do teatro de Aimé Césaire duelam com os pares Ciência/Natureza, elite/povão, Europa/África. Eles revelam a vontade de adquirir a tecnologia e as “maneiras” e “costumes” de seus antagonistas. Disso resulta um processo de identificação conflitante; tanto os personagens de um quanto do outro fracassam em suas tentativas de “liberação”. Mario e Césaire deram uma nova dimensão às vanguardas antilhana e brasileira de sua época. Ao assumirem o burlesco, a ironia, a agressividade como necessários à expressão de uma negação fundadora de identidade.
A identificação conflitante está na base dessas identidades culturais. O que funda a identidade dá consistência à alteridade. Identidade e alteridade são indissociáveis: mãe/bebê ou pai/bebê, eu/Outro, pares binários indissociáveis. Macunaíma: índio, negro, mulato ou branco de olhos azuis conhecerá a dificultade de defender interesses próprios contra a voracidade temerária da elite intelectual, política, econômica. Creio que na leitura que faço de Macunaíma encontro um modo novo de entrar no labirinto do racismo.
A noção de identidade e diferença hoje é mais presente por que há, por todo o planeta, o “narcisismo das pequenas diferenças”. Mas há também uma verdadeira paranóia na elite intelectual brasileira, receosa das “identidades” étnicas/comunitárias/periféricas, conforme a moda.
Em 1948, Jean Paul Sarte publicou o ensaio “Orphée Noir” (Orfeu negro) sobre o Movimento da Négritude. O que cabe hoje lembrar do ensaio do filósofo existencialista? Eu ressalto a pergunta de Sartre: “o que seria da sociedade branca caso os negros, compreendida e assimilada sua própria négritude, voltassem sua energia criativa para a transformação de sua condição subalterna e periférica?”
Hoje, eu pergunto, como tornar-se negra ou como tornar-se negro e libertar-se de uma identidade biológica, para vir a ser livre e apto/apta a construir a própria história? Assumir e realizar o próprio destino como pessoa, sujeito humano livre? Para o êxito da luta contra o racismo, os oprimidos precisam ultrapassar essa verdadeira arapuca que o funda: o grau de melanina, fenotipo e a textura capilar. Etapa indispensável de auto-reconhecimento, de “empoderamento” individual e vamos à luta coletiva.
Em 13 de maio 2008, Neusa Santos Souza, em uma matéria no Correio da Baixada, voltado para a periferia do Rio de Janeiro perguntou:
“Será que gostamos mesmo da nossa pele, do nosso cabelo, do nosso nariz, da nossa boca, do nosso corpo, do nosso jeito de ser? Será que nesses 120 anos de abolição conquistamos o direito de entrar e sair dos lugares como qualquer cidadão digno que somos? Ou estamos quase sempre preocupados com o olhar de desconfiança e reprovação que vem dos outros?”
“Cento e vinte anos de abolição quer dizer 120 anos de luta dos negros que, no Brasil, dia a dia, convivem com o preconceito e a discriminação racial. 120 anos de abolição quer dizer 120 anos de luta contra o racismo [...] nos espaços públicos e nos espaços privados; na Câmara, no Senado, nos sindicatos, no local de trabalho, nas escolas, nas universidades, no campo, na praça e em nossas casas.”
Para Neusa, a luta deve continuar e acontecer em qualquer lugar em que houver um negro que ainda sofra preconceito e discriminação raciais. Ela reconhece que tivemos muitas vitórias, conquistamos muitas coisas, especialmente um amor por nós mesmos, uma alegria, um orgulho de sermos o que somos: “brasileiros negros – negros de muitos tons de cor de pele”.
Em 1986, você substituiu Abdias do Nascimento no curso Conscientização da Cultura Afro-Brasileira, na PUC paulista. Como foi sua relação com o icônico Abdias? E a recepção dos estudantes a essa experiência pioneira?
Eu estava ainda em Paris, quando o IPEAFRO – que foi uma Unidade Complementar da Pontifícia Universiade Católica de São Paulo (PUC/SP) – sediou o III Congresso de cultura negra das Américas, do qual participei a partir de Paris.
Em 1984, realizou-se, durante uma semana, o curso “Conscientização da cultura afro-brasileira”, na PUC/SP. Abdias e Eliza Larkin trouxeram palestrantes de praticamente todas as universiades brasileiras, estudiosos da cultura afro-brasileira. Tive a felicidade de conhecer o Abdias do Nascimento nessa circunstância. Nessa ocasião, ele levou o Instituto de Pesquisas e Estudos Afro-brasileiros – IPEAFRO – de São Paulo para o Rio de Janeiro e eu fiquei responsável pela continuidade do curso.
Devo a Abdias do Nascimento a publicação da primeira versão do meu ensaio “A intensidade do branco no espectro das cores”, que abriu o livro com as Teses do 3º Congresso. Nada melhor para falar da recepção dos estudantes do que o fato de terem me convidado, depois de minha apresentação, para uma palestra com tema livre. “Quilombo, um campo de pesquisa”, foi o que propus para eles, porque me parecia interessante convidar os jovens estudantes paulistas para pensar a zona rural... Me lembro de ter sido um momento importante para todos nós, com muitas trocas e interesse deles. Esse assunto ganhou interesse acadêmico, sobretudo, a partir do ano 2000; (2000 menos 1964 = 36 anos).
Em um Colóquio, no Maranhão, você se ocupou do tema “Sobrevivências religiosas africanas na América Latina e no Caribe”. Como é a sua relação com a espiritualidade? Há algum diálogo dessa eventual espiritualidade e a sua perspectiva enquanto analista da IPA, com formação lacaniana?
A espiritualidade é um dado relevante para mim. Pode ter tido origem religiosa, mas hoje é certamente uma questão ecumênica. África que conhecemos nos séculos XX e XXI é, do ponto de vista espiritual, sobretudo maometana/islâmica, católica, protestante, evangélica e, como dizem os senegaleses, 100% tradicionalista... Esse título que eu usei na comunicação do encontro em São Luiz me soa hoje bastante conservador. Não me agrada a ideia de “sobrevivência”. Quando visitei países africanos, nos anos 70/80/90, percebi a espiritualidade tradicional muito impregnada na cultura geral, nos costumes. Creio que o clima das relações humanas no Terreirode Candomblé guarda vários aspectos daquelas tradições, notadamente o espírito comunitário, o respeito aos mais velhos, o rigor da hierarquia e dos rituais, etc. Pude entender porque a antropóloga Juana Elbein dos Santos (Os Nagôs e a morte), enfatizava tanto o aspecto de “tradição” dos Orixás em um “Congresso da Tradição dos Orixás e Cultura” em que estive, e do qual ela participou em Salvador. O meu contato com o Candomblé (1986), enquanto pessoa que busca ajuda, durou 13 dias de confinamento voluntário; foi radical, transformador, curto e pleno de mistério e milagres! Talvez um dia a neurociencia possa explicar isso que hoje chamo de milagre: um efeito de ‘reorganização’ das emoções, a partir de palavras desconhecidas. Tenho profunda gratidão e respeito pela Tradição dos Orixás. Quando vivi essa experiência eu nada conhecia do assunto.
A psicanálise não opera milagres, é de outra ordem, outro campo do saber: o inconsciente (estruturado como linguagem) e as emoções. Freud dizia que o analista precisava aprofundar sua relação com a cultura e fazer do estudo uma rotina para a vida. Inconsciente, repetição, transferência, pulsão, são fenômenos, inerentes à linguagem, estão presentes em nossa vida com ou sem psicanálise. Mas é nesse campo que essas categorias são observadas, estudadas, analisadas enquanto conceitos fundamentais (cf. Lacan) da metodologia da psicanálise. Freud pensava que com o desenvolvimento científico a religião desapareceria, pois era uma ilusão. Lacan previu a permanência da religião, vista como um sintoma...
Você já escreveu sobre “A situação social dos negros e o papel da escola”. Nesta nossa duríssima realidade o que você, enquanto professora, pode sugerir aos seus colegas? Como avalia centros e instituições como o Núcleo de Estudos Afro-brasileiros da UnB?
A população afrobrasileira continua sofrendo o impacto do racismo desde muito cedo em ambiente escolar e que continua em todo o Ensino Fundamental, Médio, na Universidade, no dia a dia. Há uma alienação severa quanto ao próprio racismo por parte da branquitude, uma denegação, mesmo. Infelizmente professores afrobrasileiros ou professoras, podem também não se dar conta de posturas racistas.
Mas algo de bom ocorreu nesse ano de 2020. Soube que o Documentário “Das raízes às pontas”, com direção de Flora Egécia e direção de arte de Bianca Novais, será incluído nas atividades escolares nas escolas públicas do Distrito Federal. O filme recebeu prêmio de melhor curta-metragem do Júri popular no 49º Festival de Brasília do Cinema Brasileiro, com roteiro de Débora de Morais e Hugo Lins, fotografia de Rodrigo de Oliveira, montagem de Maurício Chades, edição de som Maurício Fonteles. No filme eu falo sobre a constituição da identidade individual, enfatizando a importância da construção da autoestima no ambiente familiar. Esse tipo de iniciativa é da maior importância no sentido de retirar do espaço folclórico questões tão graves quanto a imagem de si, o cabelo crespo, o pertencimento (vínculo social) e o reconhecimento, condição para afirmação da identidade individual.
Os professores precisam acordar para o fato de que o Dia da Consciência Negra deve ser aproveitado para trazer experiências positivas de pessoas afrobrasileiras, estrangeiras de origem africana que sirvam de estímulo, de inspiração, motivação para que crianças e adolescentes negros confiem mais em si e acreditem em seu futuro. O objetivo é trazer aspectos positivos, construtivos, enriquecedores. Que se lembrem da literatura (prosa, poemas, teatro), das artes visuais, do design, do cinema de diretores e diretoras negras, da história em quadrininhos, enfim há uma arte produzida por artistas afrobrasileiras e afrobrasileiros. Assim como há filmes que podem ser muito interessantes para os adolescentes, a exemplo de Ultimas conversas, de Eduardo Coutinho, Mãos talentosas, a história do neurologista negro Bem Carson, Muito além das estrelas, com a história de mulheres negras, cientistas norte americanas trabalhando na NASA.
Fui membro do júri das Mostras de cinema negro Adélia Sampaio, criada pela professora Edileuza Penha, na UnB e é bastante animador ver a alta qualidade dos filmes trazidos à Mostra. Alguns talvez possam ser adquiridos pela Secretaria de Educação, por exemplo, para enriquecer a experiência estética de crianças e adolescentes. O oposto disto é toda nossa tradição.
Os Centros de estudos afro-brasileiros são espaços muito importantes que podem influenciar o pensamento acadêmico caso expandam suas áreas de interesse tanto ao olhar para o Brasil, para a Diaspora africana, para a Africa quanto para o resto do mundo. Considerar as ciências humanas, as ciências exatas, o contexto de transformação da tecnologia da informação, produção e difusão para midias sociais, etc.
Tendo escrito sobre “O espírito da intimidade: ensinamentos ancestrais africanos sobre relacionamento” nos diga algo sobre a educação contemporânea em relação a esses ensinamentos.
Quando li o livro da escritora burkinense Sobonfu Somé Os ensinamentos ancestrais africanos sobre relacionamentos, senti muita afinidade com sua percepção do sentido de comunidade. O que os seres humanos têm em comum, em qualquer hemisfério e em qualquer latitude e qualquer que seja a raça, seu gênero, sua etnia, sua classe social, seu fenótipo e tom de pele, enfim, é a sua natureza humana universal.
O narcisismo contemporâneo é mais frequente, mais vigoroso que antes; a “globalização cultural” com o avanço das mídias sociais retira a importância da família extensiva; ou o núcleo familiar reduziu-se, frequentemente, a um só genitor ou a uma genitora. Faltam olhares de carinho sobre a criança, falta escuta para suas aventuras e desventuras escolares, falta contato: a ternura do colo.
A escola tornou-se uma empresa e uma empresa, que visa lucros, com o objetivo de ser eficaz, libera os pais de acompanhar mais de perto o processo de aprendizagem dos filhos, e participar dele. Quando pública, a escola parece menos preocupada em (ou não tem condições de) assegurar a transmissão do conhecimento, valores culturais, éticos, etc. Os adolescentes ficaram sem qualquer continência, perdidos os ritos de iniciação, e descobrem na internet um continente virtual que os socorre no desamparo. Eles reconstroem a seu modo uma família extensiva virtual.
Se o sistema educacional pôs fim às solenidades de formatura do ensino fundamental e médio - notadamente nas escolas públicas -, os jovens adolescentes reinventam formas de comemorar suas conquistas. Eles produzem, a seu modo, seus novos ritos de passagem. Não se trata, aqui, de lamentar uma perda de valores culturais ancestrais. Trata-se, sim, de tentar apreender algumas mudanças nesses mesmos valores: novas concepções de bem estar e de felicidade.
Apesar dessas mudanças, que refletem os avanços científicos e tecnológicos, em Uagadugu, como em Brasília, Teresina ou Nova Iorque, o ser humano continua a ter como questão saber a que veio, de onde veio, o que fazer para ser feliz. Graças a esse aspecto, que se liga à universalidade, é possível para alguém cuja infância transcorreu numa aldeia tradicional africana de um pequeno país, como Burkina Faso, partilhar, com a cultura mais avançada em tecnologia no século XXI, sua experiência de vida, seus valores, seu modo de estar-no-mundo. O livro de Sobonfu Somé, O Espírito da intimidade, é importante pelo que resgata e relembra. Sua criatividade está no organizar e oferecer como possibilidade de vir-a-ser a nova humanização da comunidade humana.
“É preciso toda uma aldeia para manter os pais sãos”, de modo a educar bem seus filhos, tal afirmação transcende a aldeia, transcende o país e suas fronteiras. Os valores que ela ressalta nos modos de relacionamento da aldeia estão profundamente vivos no dia-a-dia de qualquer família do século XXI: pela presença ou pela ausência.
Talvez possamos - para pensar a nossa realidade - imaginar essa ética da comunidade aplicada a um grupo que se reúne para discutir seus problemas, a uma organização não governamental, a uma cooperativa, a uma instituição de ensino, a um hospital, a uma clínica etc., já que “quando não descarregamos nossos dons, vivenciamos um bloqueio interior que nos afeta espiritual, mental e fisicamente, de muitas formas diferentes. Ficamos sem ter um lugar para ir, quando temos necessidade de ser vistos”. “A comunidade é uma base na qual as pessoas vão compartilhar seus dons e receber as dádivas dos outros. Quando você não tem uma comunidade não é ouvido; (...) não tem pessoas para afirmar quem você é e ajudá-lo a expressar seus dons. Essa carência enfraquece a psique, tornando a pessoa vulnerável ao consumismo e às coisas que o acompanham.”
Em Welcoming Spirit Home, “dando boas vindas ao recém nascido” (isto é: o espírito que chega), Sobonfu Somé narra histórias e tradições Dagara, seu grupo étnico, no qual a criança é considerada a alma da aldeia, de acordo com a tradição. O grupo tem numerosos rituais para celebrar a chegada e a educação dos pequenos; ele ajuda os avós e pais e a comunidade a mostrarem a criança a si mesma. Muito do que caracteriza tais rituais pode ocorrer aqui e ali, ao nosso redor no Brasil, como em outros países. Mas se os bebês pudessem falar, penso que todos iriam querer nascer assim: serenamente desejados por seus pais e por sua comunidade.
Enquanto poeta e professora aposentada do Instituto de Artes da UnB o que pode nos dizer sobre arte africana, corporalidade e ritmo como oportunos veículos de saberes necessários como contraponto ao mundo tecnológico de hoje?
De fato há uma forte conexão entre arte africana, corporalidade, ritmo. Nos anos 80 e 90 me dediquei bastante à arte africana tradicional, centrada em máscaras e esculturas, para produzir material didático. Explorei pouco esse material. A arte africana contemporânea fica, em parte, entre as formas expressivas da contemporaneidade, com liberdade de expressão. A África motriz, enquanto inspiradora, empoderadora do espírito criativo costuma dar frutos incríveis. Há uns dois anos, vi uma performance, em Salvador, onde a artista se cobria toda com um saco de lixo preto na porta de uma livraria. Ela aguardava a saída do público. Quando as pessoas começam a sair, ela começa a se mover dentro do saco, e as pessoas não conseguiam sair, elas paravam na porta, tomadas de surpresa, e iam, como que entrando na performance com sua estupefação. A performance nos transmitia a angústia do silêncio quando expressivo da exclusão, a angústia da morte em vida dos excluídos, dos ansiosos em consequencia da frequencia do assédio urbano. Foi uma das expressões da corporalidade mais impactantes que vi nos últimos tempos. Ali, o ritmo era apenas dos movimentos da performer, o corpo, havia sido transformado em um organismo primitivo que se movia aprisionado. Quem não quer isso em sua vida, deve se tornar urgentemente antiracista, além, muito além de ser contra o racismo.
O vírus, me lembra a fome e a fome me lembra “A boca do mundo”, obra de um escultor bahiano que vi numa exposição de Arte Afro-brasileira, em 1987 no MAC-USP. Há uma pintura ganense atual, um design gabonês atual, música, escultura senegalesas atuais, me lembro o Ousmane Sou, escultor do Senegal; a literatura e o cinema africano atuais nos trazem uma grande contribuição para vermos a África com novo olhar.
Pergunta dos filhos Otávio e Flávio: Existe alguma coisa que você gostaria de ter passado para os seus filhos mas que não conseguiu? O que você acha que conseguiu transmitir aos filhos?
É difícil ser uma mãe suficientemente boa. Dizem que ensinamos melhor pelo exemplo que por falações. Mas o que ensinamos pelo exemplo pode ser aprendido como bom ou como sendo algo que é “melhor evitar”...
Talvez tenha lhes transmitido o interesse pelo desconhecido, o interessse por viagens, o gosto por culturas diferentes; o respeito ao próximo, a honestidade, o amor próprio. Eu gostaria de ter tido a possibilidade financeira de manter o vínculo de meus filhos com a “família extendida”, quando estivemos fora do país por quase cinco anos: vir ao Brasil uma vez
por ano teria cumprido essa finalidade!
Pergunta da psicanalista Jansy Mello: você acredita que seus trabalhos sobre a relação mãe bebê ou sua experiência com a maternidade a ajudaram na sua prática como psicanalista e, no caso, de uma afirmativa, de que modo lhe foram úteis?
A experiencia de observação da relação mãe/pai/família-bebê sem dúvida me ajuda na prática com a psicanálise. Foi útil no sentido de dar consistência a conceitos ou elaborações teóricas de Melanie Klein, Donald Meltzer, Winnicot, Bion, particularmente. Acho que posso acrescentar que essa experiência foi útil ainda no sentido de permitir afinar o instrumento da escuta (sem memória, sem desejo, como sugeriu Bion).
Psicanálise, disse Freud, não se ensina. Ele, em outro momento, também afirmou que educar era um dos impossíveis (junto a governar e curar). Como você se situa ante essas colocações, uma vez que se ocupou tanto do ensino universitário quanto da clínica em psicanálise?
Os textos de Freud sobre tradições, costumes e instituições sociais, incluindo a religião, são uma interessante porta de entrada para a extensão da psicanálise no espaço acadêmico; e toda sua produção sobre arte e literatura. No Instituto de Artes da UnB eu criei uma disciplina que chamei de “Introdução à psicanálise”, no contexto do Mestrado em Arte e tecnologia do Departameto de Artes Visuais. Tive muita satisfação com o trabalho. Cabia aos estudantes fazerem a ponte entre a psicanálise e a arte. Creio que funcionou bem. Mas é possível que para os estudantes tenha sido frustrante, pois eu estava apenas começando a construção desse olhar.
Ter os ímpetos (digamos assim) didático e o maternal lhe ajudam ou atrapalham na clínica?
Da palavra ímpeto guardo o quinto sentido figurado, do Houaiss: dinamismo, vitalidade. Me lembro que quando estudei didática e fiz estágios supervisionados me dediquei com bastante disciplina e satisfação de modo a dar uma aula estimulante, rica para adolescentes. Quando meus filhos eram pequenos, entre três e cinco anos, morávamos em apartamento, eles desciam para brincar. Quando chamados, subiam. E uma vizinha certa vez me perguntou: você nunca grita com eles? Eu perguntei: gritar, por quê? “Mas... você fala tão mansinho e eles obedecem”. É, disse eu, a gente conversa sempre; não precisamos gritar. Ela ficou bastante impressionada, de ver que isso é possível. Não sei se já fiz alguma relação entre ser mãe e ser psicanalista. A maternidade me levou para um lugar diferente do de sujeito-suposto-saber...
Alguma sugestão para esse momento, em que o medo ao vírus está imperando e impedindo?
Parece que à forma aparentemente inócua com que o vírus pode chegar até nós, de modo invisível a todos os nossos sentidos, de modo absolutamente silencioso, está despertando todos os fantasmas que dormiam... e estamos frágeis como crianças que tem medo do escuro e não podem adormecer sozinhas.
A ansiedade e a angústia de estar consigo mesmo por 24 horas, vários dias seguidos; a dificuldade de conversar com os mais próximos, os mais íntimos veio à tona. Mas há também aqueles que estão aproveitanto esse tempo exatamente pra conversar, falar do que nunca havia sido possível falar, antes. O descobrimento do que há de mais humano em nós é o que podemos descobrir nesse tempo estranho.
Estamos tendo a oportunidade de olhar para nós mesmos e para os mais próximos. Estamos tendo a oportunidade de aprender a fraternidade, a sororidade com os mais distantes de nós.
O alimento, o saldo no banco, a gasolina, o gás, a água... Penúria para milhões, tranquilidade para a minoria. O silencioso e indesejado hóspede disponível para todos nós: a única coisa realmene democrática no momento, nos dando a oportunidade de aprender a solidariedade.
Não a caridade, mas a solidariedade. O vírus está nos dando a oportunidade de olhar para dentro de nós mesmas, de nós mesmos, opotunidade de observar nosso amor próprio, avaliar o lugar reservado ao outro, em nós. Há lugar para um pouco de africanidade, Ubunto: eu sou porque nós somos! Estamos sendo convidados a colocar mais biofilia em nossa vida: nossa natureza humana é una com a natureza externa: precisamos de água límpa, terra/território, ar puro, fogo controlado nas florestas... O amor ao próximo é a imagem no espelho do amor próprio. Somos todos responsáveis e somos todos agentes de mudança, dizia um dia desses Ailton Krenak. Muita gente lembra A peste de Camus... Prefiro lembra Alberto Caiero (heterônimo de Fernando Pessoa):
“Da minha aldeia vejo quanto da terra se pode ver no Universo... Por isso a minha aldeia é tão grande como outra terra qualquer Porque eu sou do tamanho do que vejo E não, do tamanho da minha altura... Nas cidades a vida é mais pequena Que aqui na minha casa no cimo deste outeiro. Na cidade as grandes casas fecham a vista à chave, Escondem o horizonte, empurram o nosso olhar para longe de todo o céu, Tornam-nos pequenos porque nos tiram o que os nossos olhos nos podem dar, E tornam-nos pobres porque a nossa única riqueza é ver.
Toda nossa riqueza é ver o Outro, como se nos víssemos, amorosamente, incluindo a natureza externa a nós: ela é porque nós somos.