Maria Lúcia Verdi -
Uma querida amiga, a sem-par Vilma Areas, escritora e professora de literatura, fez um precioso comentário (sobre o século XXI): “O que salva é o Réquiem de Mozart. Nunca vi dor tão musculosa”. Enquanto escrevo, ouço o Réquiem. A associação feita por Vilma é por demais pertinente.
Estamos vivendo uma imensa sensação de morte, de luto e não é necessário detalhá-las. A dor expressa na missa que Mozart escrevia, sem tê-lo consciente, para a própria morte, é fortemente dolorosa, como a de um músculo treinado quando exigido além do habitual. Como estamos sendo exigidos: além do limite.
Treinado na dor, Mozart. Nós, como povo, historicamente tentamos anualmente diminuir (negar? esquecer?) a dor nos carnavalizando e, todas as semanas, afastando-a (dentro do possível) nos bares. Atualmente, praticamos a dificílima arte de conviver com a morte de todos os símbolos que sustentavam a civilização. Resta-nos (nós, tão menos fortes, tão menos musculosos), deixar-nos elevar dessa putrefação toda por meio, por exemplo, da beleza absoluta do (sofrido até a medula) Réquiem. O que faríamos sem a Arte?
Esta ininterrupta pergunta me (re)fiz ao assistir “Imagem e Palavra”, o último filme de Godard, em seus iluminados 88 anos. Resposta: não faríamos nada, além de sobreviver como máquinas ou como animais bem treinados.
O filme do Mestre me chegou como um testamento. Radical homenagem ao cinema, ao poder (para o bem e para o mal) avassalador das imagens, bem como ao poder (inquestionável) da pontuação reflexiva que as palavras podem representar frente ao fluxo imagético que nos invade. Salvação pelo pausa-palavra.
Em “Imagem e Palavra” vemos cenas de filmes antológicos e domésticos pontuadas por comentários ditos na voz magnífica do diretor - como numa viagem de ácido conduzida por uma mente absolutamente lúcida e poética. As frases, as palavras em distintas línguas são ouvidas em diferentes alto-falantes - discreta sinfonia.
A montagem do filme me lembrou o “Ulisses”, do Joyce, aquela incrível capacidade de demonstrar estilos em cada fragmento independente; utilizar todas as linguagens, reproduzindo o mundo em seus infinitos significantes\significados temáticos, ao mesmo tempo em que se atem aos menores detalhes do mundo do cotidiano.
No “Ulisses”, como no “Imagem e Palavra”, não compreendemos todas as frases, as línguas são muitas (felizmente, no livro, existem as Notas nas duas boas traduções ao nosso português brasileiro).
No filme, Godard ainda pede que não se traduzam certas passagens, quer preservar o mistério da fala, da enunciação. A beleza e o horror da vida estão nesse filme que traz todas as caras do mundo. O Capitalismo e sua lógica brutal, a questão árabe, a loucura ocidental tudo é projetado como pergunta interminável, usando todas as tecnologias e em cores. Viva vovô Godard, sempre irreverentemente apontando um caminho: a arte.
Com tudo isso no meu universo mental, me dirigi ao emblemático Teatro Dulcina à reunião do pessoal da cultura do Distrito Federal, convocada para lutar pelo direito, estabelecido em Lei distrital, de pleno funcionamento do Fundo de Apoio à Cultura. Nunca apresentei um projeto ao FAC, o que pretendo fazer. Impressionante a diversidade visual e linguística das em torno de quinhentas pessoas que lotavam o espaço. Festa da resistência das identidades, festa da expressividade da palavra e da imagem, altissonantes corpos cheios de ideias.
Ver e ouvir aquela gente toda numa sala do vital submundo da Capital, úmida, cheia de ácaros, difícil de respirar, foi uma viagem joyce-godardiana. Teatro e escola esquecidos pelo governo. Aquelas poderosas vozes unidas na defesa de algo que vai muito além do justo recebimento dos fundos, da correta distribuição das verbas: todas e todos dizendo do valor da arte como instrumento de formação, expressão e salvação. Todas as regionais representadas, todos os estilos e vozes ali naquela sala, os ícones da cultura brasiliense presentes.
Não se trata unicamente do que devem, por direito, receber os artistas e produtores culturais, se trata do que a população do DF recebe, precisa receber, de estímulo para resistir e produzir. Muito mais do que pão e circo, se trata de alimento para a mente e a alma resistirem frente à uma realidade patética, desoladora.
Na assembleia estavam presentes dois deputados distritais, um deles o líder do governo, ambos se comprometeram entusiasticamente com a defesa da continuidade plena do mecanismo do FAC.
Precisamos do circo, do cinema, das artes visuais, da literatura, do teatro, da performance, de tudo aquilo que nos faz respirar acima do cheiro que este momento histórico exala. Arte forma, problematiza, instaura a necessária dúvida, diverte, nos faz rir do absurdo da existência.
Como deixar nossos produtores e artistas sem receber? Como não informar com transparência à sociedade o que está acontecendo com a verba destinada ao FAC? Como deixar sem analisar projetos por meses a fim? Trata-se de respeito - um conceito, entre tantos, praticamente esquecido.
Só com a educação e a cultura poderemos nos afirmar como povo e Nação. #MozartJoyceGodardeoFACsãonossos! Assim como todos os variados ícones da cultura clássica e popular, brasileira e universal.