Zuleica Porto -
“Explorar a sincronia histórica entre a invenção do cinema e a reinvenção do Japão moderno, utilizando a produção cinematográfica como eixo e espelho”; assim João Lanari Bo define seu objetivo com o minucioso estudo “Cinema japonês – filmes – histórias – diretores”, Giostri Editora, 2016.
Professor de cinema da Universidade de Brasília e também cineasta, o autor alia o conhecimento sobre a arte de filmar ao que adquiriu sobre a cultura e história nipônicas e não somente por meio das vastas leituras de que dá conta em seu livro.
Residindo no Japão durante três anos (2006-2009), Lanari teve a oportunidade de mergulhar na caudalosa produção cinematográfica, e também na cultura da gente que habita o arquipélago do Sol Nascente.
Seu livro é ordenado cronologicamente, desde a chegada do cinema ao país, em 1896, até a caleidoscópica produção contemporânea.
Sempre com o olhar atento à historiografia do Japão, que de uma política de isolamento nacional e regime feudal, passa no final do século XIX a sofrer a influência dos modelos ocidentais, quando se inicia a era Meiji.
Daí em diante, diz o autor, desenvolve-se uma política militarista, conservadora e imperial que vai até 1945, quando dá-se a ocupação pelas tropas dos Estados Unidos.
O mundo inteiro sabe, é o ano em que a bomba atômica lançada sobre as cidades de Hiroshima e Nagasaki estarrece, assombra e marca de forma indelével a história da humanidade.
O trabalho de João Lanari segue sempre esta dupla mirada, cinema e história, sem deixar de lado comentários críticos, dados biográficos e deliciosas anedotas sobre filmes e diretores, atores e atrizes, fotógrafos, roteiristas, de toda a produção mais relevante na cinematografia japonesa.
Esta é classificada em três grandes “idades”, seguindo a periodização adotada por Oshima Nagisa (o autor opta pela ordem nipônica no que se refere aos nomes próprios, com o sobrenome na frente) em seu documentário sobre o centenário do cinema:
• O período de formação, durante as décadas de 20 e 30 do século XX;
• O grande cinema clássico da década de 50, simultâneo ao crescimento econômico do pós-guerra;
• O cinema independente e a chamada “nouvelle vague” japonesa, a partir dos anos 60 ao final do século.
Dentro desta periodização, o livro é organizado em seis Capítulos, assim intitulados: “Inventando o cinema e reinventando o Japão: século XIX e Hiroshima”; “Cinema na ocupação – 1945-52”; “Anos 50 e além – os Clássicos”; “Anos 60 e antes – Rebeldia e Nouvelle vague”; “Anos 70 e 80: ‘Pinku eiga’ e Política”; “Anos 90 e 2000: Bolha econômica e século 21”.
O autor inclui ainda a vasta bibliografia de que lançou mão em seu trabalho, bem como a relação dos diretores e os respectivos filmes citados, constituindo assim o livro um precioso material de consulta para quem quer conhecer e estudar a cinematografia em pauta, do seu nascimento a nossos dias.
Há ainda um esclarecedor glossário de termos japoneses, essencial para leitores e leitoras do Brasil sabermos, por exemplo, que o “pinku eiga” acima refere-se ao cinema “erótico soft-core, muito em voga nos anos 60 e 70”.
Ou para saber que “haraquiri” é a forma mais conhecida no Ocidente do “Seppuku”, ritual suicida reservado aos militares e samurais.
Curioso observar nestes termos duas constantes no imaginário cinematográfico japonês - sexo e morte.
Mas voltemos aos diretores e seus filmes. Do primeiro período estudado, dois nomes são familiares ao cinéfilo ocidental: Mizoguchi Kenji e seus “Contos da lua vaga” (1953) e “Os amantes crucificados” (1954), já produzidos no pós-guerra; e Ozu Yasujiro, que inicia sua produção no final dos anos 20 e no período “clássico” conquistaria o público externo com seus delicados e melancólicos retratos da vida moderna japonesa.
Buscando extrair do cotidiano o que nele há de sublime, trouxe inovações na maneira de filmar, das quais tornaram-se célebres a “colocação inusitada da câmera”, do ponto de vista de uma pessoa sentada no tatame, e os “planos-travesseiro”, “naturezas-mortas” que marcam a passagem do tempo cinematográfico e espiritual.
O terceiro vértice da “Santíssima trindade” do período clássico é o mais conhecido entre nós: Kurosawa Akira.
Assim como Mizogushi e Ozu, sua produção atravessa o período da segunda guerra mundial e a ocupação; é o único dos três a filmar até a década de 90, quando despede-se de nós com o comovente “Madadayo”, de 1993.
Nos turbulentos e revolucionários anos 60 (quem diria então que viveríamos os tempos autoritários e conservadores do século XXI?), em que todo o mundo parece querer reinventar uma nova forma de viver, surge Oshima abordando em seus filmes os dois temas pulsantes nesse desejo de mudança – sexo e política.
Qual o mais polêmico entre eles, “O império dos sentidos” (1976) ou “Merry Christmas, Mr. Lawrence” (1983)?
É ainda nessa década que surge o cinema de Imamura Shohei, mais conhecido no Brasil por “A balada de Narayama”, realizado já nos anos 80.
Lanari faz uma extensa análise crítica da obra, extensa e diversificada, deste cineasta, impossível de reproduzir ou sintetizar neste pouco espaço que me cabe.
Como o faz quanto aos diversos cineastas, estilos, gêneros e suportes que se seguem, dos anos 70 até nossos dias, mergulhando o leitor numa cultura que hoje influencia cada vez mais o pensamento e estilo de vida ocidental.
Pois, malgrado o desejo separatista que insiste em construir muros, reais e simbólicos, somos, cada vez mais, uma aldeia. Conturbada e conflituosa, mas aldeia.
No vasto universo de produções – filmes, vídeos, games, e o mais que se inventa a cada dia – uma ausência a lamentar: a de mulheres cineastas, pois apenas um nome feminino surge em todo o livro, o de Kawase Naomi, como a ressaltar a “tradição masculinizante” da sociedade japonesa.
Para quem ama o cinema das diversas latitudes, para quem quer conhecer a história do Japão e de seus cineastas, para quem tenta entender o mundo turbulento que nos cabe viver hoje, uma leitura enriquecedora e fascinante.