"A vida é de quem se atreve a viver".


Poema nas paredes de Brasíia
Palavras no concreto de Brasília

Zuleica Porto -

Os livros ardem mal (2006) é um alentado romance do escritor galego Manuel Rivas (A Coruña, 1952), que escreve em sua língua materna, perseguida a ferro e fogo pelo ditador Franco, também galego.

A narrativa tem como ponto de partida a queima de livros ocorrida na Dársena (embarcadouro) da cidade, após o golpe fascista de 1936.

O autor insere na contracapa uma fotografia da sombria cerimônia, como a ressaltar aos menos avisados que o relato que se segue não é fruto somente da imaginação.

Regimes totalitários costumam perseguir escritores e queimar livros, física ou simbolicamente. Assim o fizeram a ditadura franquista, a nazista, a stalinista, a de Vargas e o golpe de 1964.

Os livros queimam a 451graus Fahrenheit, informa Ray Bradbury ao intitular 451F sua obra de aparente ficção científica, testemunho do angustiado presente do autor.

Foi escrita na década de 50, quando seu país vivia as agruras do macarthismo, levada a efeito por uma comissão do Congresso dos Estados Unidos, sem ruptura do regime democrático.

Portanto, não só nas ditaduras é perseguido o livre pensar. Recentemente as artimanhas do processo conhecido como “caça às bruxas” foram objeto do filme Trumbo (Jay Roach, 2015).

Dalton Trumbo, escritor, roteirista e diretor de cinema, era um dos “10 de Hollywood”, que se recusaram a delatar amigos escritores à Comissão de atividades antiamericana do Congresso.

Entrou na lista negra, foi preso e em 1971 adaptou e dirigiu Johnny vai à guerra, romance por ele escrito em 1939, um dos mais vigorosos libelos pela paz.

Truffaut, por sua vez, filmou, a partir do livro de Bradbury, Fahrenheit 451 (1966), no qual Oskar Werner personifica o bombeiro Morag, que tem como função descobrir e queimar livros em um futuro indeterminado.

Um dia, resgata da fogueira o David Copperfield, clandestinamente, torna-se um leitor, que se revolta com a pasmaceira da mulher diante da telona.

Em dupla atuação, Julie Christie é a mulher anestesiada pela TV (premonitoriamente parecida com as gigantescas telas de plasma de nossos dias) e uma resistente que esconde livros.

Denunciado pela mulher, é com a rebelde Clarisse que ele foge para a floresta e torna-se um homem-livro, unindo-se a um grupo de homens e mulheres que decoram as grandes obras da literatura para salvá-las do esquecimento.
 
Rivas, em uma entrevista concedida em 2007 a Hernando Salazar, diz que “os meios de comunicação e toda a maquinaria pesada que representam são utilizados para o controle das mentes (...) é a produção industrial do ódio a que vai criando as condições para que se produzam as tragédias. (...) por que não pensar que certas palavras podem neutralizar essa produção de ódio? ”.

E propõe, em contraponto às grandes abstrações tão caras aos totalitarismos (Pátria, Família, Raça Pura são algumas delas), aproximarmo-nos do significado concreto das palavras.

Entre asas e eixos, encontro palavras concretas. O trágico tirano de Sófocles (427 AC) revisitado com humor: “As joias da coroa do Édipo-Rei são os olhos da cara”, numa passagem subterrânea da Asa Norte.

Uma coruja na SQN 403 fala que “A vida é sonho”, trazendo o dramaturgo espanhol Calderón de La Barca (1600-1681), a nos lembrar da brevidade da vida e da ilusão das aparências.

Uma escadaria de outra passagem subterrânea recria as “Instruções para subir uma escada” (1962), em que Julio Cortázar nos coloca diante do absurdo da existência cotidiana.



Até mesmo um trecho de um discurso lírico de JK, evocando nossas alvoradas e crepúsculos, faz pensar que o fundador da cidade, embora sem pretensões literárias, tinha mais habilidade com as palavras que o medíocre pretenso poeta que usurpou o cargo e hoje ocupa, sem a isso ter direito, o singelo palácio da Presidência da República.

O ilegítimo Golpe de Estado que se instala no Brasil desde abril deste ano já mostrou seu viés autoritário ao ter entre seus primeiros atos o desmonte da Cultura e a extinção de programas sociais, ao prometer a instauração de uma Escola sem pensamento crítico e o fim da gratuidade do ensino público superior. Não há nesse golpe nada que sustente a deposição da presidenta Dilma Rousseff.

Diante de tão sombrio panorama, ler e interpretar o que dizem as paredes pode ser um ato de resistência.

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