Zuleica Porto -
A frase acima está na crônica “Mineirinho”, escrita por Clarice Lispector quando o bandido foi morto com 13 tiros de metralhadora, em primeiro de maio de 1962.
O texto foi publicado na revista Senhor, um mês depois, com o título “Um grama de radium – Mineirinho”.
Quando soube da menina Beatriz, estuprada aos 16 anos por 33 homens, a crônica de Clarice me saltou dos arquivos da memória. Deusa nem sempre confiável, Mnemozyne me enganou: não foram 30 tiros, nem 33, como foram os algozes de Beatriz. Foram 13.
E Clarice confessa que “há alguma coisa que, se me faz ouvir o primeiro e o segundo tiro com um alívio de segurança, no terceiro me deixou aflita, no quarto desassossegada, o quinto e o sexto me matam de vergonha, o sétimo e o oitavo eu ouço com o coração batendo de horror, no nono e no décimo minha boca está trêmula, no décimo primeiro digo em espanto o nome de Deus, no décimo segundo chamo meu irmão. O décimo terceiro tiro me assassina. Porque eu sou o outro. Porque eu quero ser o outro”.
13, 33. Em 12 de junho deste ano, dia no Brasil dedicado aos namorados e namoradas, ao amor, portanto, 50 pessoas foram assassinadas em uma boate em Orlando, EUA.
Por que? Porque quem matou não aceitava o amor entre pessoas do mesmo sexo. Em 1987, Luiz Antonio Martinez Corrêa, ator e diretor, irmão de Zé Celso, foi morto com 107 facadas.
Uma bala era o bastante para matar Mineirinho“e no entanto, nós o queríamos vivo”, diz Clarice. Um homem violador seria o suficiente para deixar Beatriz para sempre marcada pela dor, mais que no corpo, na alma.
Uma facada seria o suficiente para causar dor nos que amavam Luiz Antonio, que apenas amava outros homens. Um morto na boate seria o suficiente para manchar de sangue inocente toda uma cidade.
O que há no exagero do ódio e no excesso de tais números que, espetaculares, provocam indignação? Se eu sou o outro, como diz Clarice, se eu quero ser o outro, eu fui responsável pelos 13 tiros em Mineirinho, pelos 33 golpes no corpo da menina, pelos 50 assassinatos em Orlando, pelas 107 facadas em Luiz Antonio.
Nós, os “sonsos essenciais”, diz Clarice. Nós que precisamos ser sonsos para que nossa casa não estremeça.
Para que nossa vida não estremeça. “Para que minha casa funcione, exijo de mim (...) que eu seja sonsa, que eu não exerça a minha revolta e o meu amor, guardados. (...) Enquanto isso dormimos e falsamente nos salvamos”.
E atribuímos ao “outro” a violência para a qual contribuímos a cada dia. Outros, os policiais violentos, os estupradores bestiais, os assassinos homofóbicos...e imediatamente acusamos, julgamos e tiramos de nós toda a culpa. Julgamentos e acusações que voltarão na cifra assustadora da próxima brutalidade. Do outro.
“Já era tempo de sermos mais divinos”, comentou Clarice anos depois, referindo-se ao caso de Mineirinho.
“Se adivinhamos o que seria a bondade de Deus é porque adivinhamos em nós a bondade, aquela que vê o homem antes de ser um doente do crime”. Ler Clarice é desorganizar-se. E perder o sono dos justos, porque não há justiça entre nós.