"A vida é de quem se atreve a viver".


Zuleica Porto: “Cidade da Esperança, que neste abril tão bonito, de céu azul e entardeceres inesquecíveis, é palco de um triste espetáculo... quando soltaremos, Brasília, Brasil, o Grito Infinito?” (Foto: Ildefonso Pereira)
Yaras, lobeiras e cigarras aflitas – a poesia de Ildefonso de Sambaíba

Zuleica Porto –

Grito infinito

Mesmo aqui, nestes sules
de uma Capital da Esperança,
ela se apaga, depois rebrota
como o cerrado, das chamas
para doar lobeiras ao guará.

Mesmo naqueles desnortes
de um Campo da Esperança,
encova-se, depois transcende
tal yaras que emergissem das
águas sagradas do Paranoá.
–       mais! mais! mais!-

Quando chegar outubro,
sob as aulas das aflitas cigarras
saberemos romper o silêncio,
com um grito... … ...infinito!

E quando chegar abril
(dia 21, ano 21, século 21),
no cenário do aniversário,
cá ainda estará, Esperança?

-Esperar, sem desesperar.
                            (06.01.21)

O poema acima foi o vencedor do Prêmio Literário Alan Viggiano, o primeiro promovido pelo Sindicato dos Escritores do Distrito Federal, com o tema Brasília, aqui mora a Esperança. Pensado para celebrar os 60 anos de Brasília, foi adiado para este ano, por motivo da pandemia que paralisou o mundo. Naquele abril, pensávamos que tudo voltaria ao normal em poucos meses; hoje não sabemos se, nem quando, ela será controlada no país. Diante disso, nada mais oportuno do que o tema do concurso, pois mais que nunca a esperança se faz difícil e necessária, não só na chamada Capital da Esperança, mas em todo o Brasil.

O autor do poema, Ildefonso Pereira de Sousa, ou Ildefonso de Sambaíba (seu nome de poeta) tem na bagagem 5 livros publicados, a saber: Florescência (1984), coletânea dos então servidores da Imprensa Nacional; Vida de vidro (1994), Jotanesi Edições; Buquê de urtigas (1999), coletânea do autor editada pela Academia Taguatinguense de Letras como parte do Projeto Livro na Mão, destinado aos estudantes de segundo grau das Escolas Públicas do DF; Quem matou as gazelas? (1998), e Samjahlia – versos in versos, (2015), Editora Kiron. O título deste último é composto pelos três lugares que o formaram: o lugar onde nasceu, a Sambaíba de seu nome de poeta, Grajaú, a cidade onde cresceu, e a Capital da Esperança, onde ele escolheu viver.

Mas vamos ao Grito Infinito. Nas duas primeiras estrofes, a Esperança balança “entre sules” da cidade erguida em meio ao cerrado, que todos os anos pega fogo e no entanto, às primeiras chuvas, “rebrota” (…) “para doar lobeiras ao guará”, e os “desnortes de um Campo da Esperança” (para quem não sabe, o cemitério da cidade), onde ela “encova-se”, mas depois “transcende tal yaras” emergindo das “águas sagradas do Paranoá”.

Brasília, traçada em duas Asas, (até hoje se discute se asas de um pássaro ou um avião serviram de inspiração ao inventor da cidade, o urbanista Lúcio Costa – eu prefiro o pássaro), é vista como sempre capaz de reinventar a Esperança.

As duas estrofes finais lançam-se ao futuro, primeiro de um outubro que já é passado, quando, ensinados pelos cantos das “aflitas cigarras”, romperíamos o silêncio em que ainda nos encontramos, e lançaríamos o “grito infinito”, por enquanto ainda preso em nossas gargantas. A última estrofe nos lança a pergunta: no dia 21 deste abril de 2021 do século 21, aos 61 anos completados, ainda estará conosco a Esperança?

Passando pelos livros de Ildefonso, o leitor percebe que ela, a equilibrista imortalizada no verso de Aldir Blanc, já estava presente nos poemas de Vida de vidro. Em O sol virá, a primeira estrofe é “além da esperança / há uma certeza / o sol virá”), em Crepúsculo, o último verso diz que a Esperança é a “véspera de um novo dia” e o poema Seus olhos fala de “sóis verdes” das esmeraldas, dos olhos de alguém, e, roubados estes sóis, “verde, agora, só a esperança de esperar”.

Verde é a cor de Brasília, cidade-bosque, verdes são os campos do Maranhão onde o poeta foi criança, a Sambaíba das serras, das “espinhosas macambiras” e das flores da caraíba, lugar onde estão “saudades minhas, minha Sambaíba” (Negro Coração, em Vida de vidro). Em Quem matou as gazelas, ressurge a infância das “saudades mais antigas”, quando às 5 da manhã o menino tem que “acordar-sonâmbulo fazer-lição pisar-arroz tirar-leite cortar-lenha  tomar-banho trocar-roupa quebrar-jejum sair-correndo chegar à / Escola Rural Gonçalves Dias / adiantado” (Colete amarelo e fraque cinza).

O menino que “espantava passarinhos que estruíam o roçado da família” (“Bilhete à Zildinha Vieira) trouxe para o Cerrado brasiliense todo o conhecimento que adquiriu na infância – passear com ele pelo “bosque da 402 Norte” (Determinismo, em Samjahlia) é como ter uma aula de botânica. Sabe o nome de árvores de grande porte, de arbustos perfumados, medicinais, da gigantesca Sumaúma ao minúsculo pé de manjericão escondido na cerca-viva de um bloco. Plantas, bichos, águas, fogo, vento, os quatro elementos povoam seus livros. Bichos – araras, arapongas, bem-te-vis, cigarras, jabutis, jaburus, joões-de-barro, guarás - plantas – caliandras, ipês, jacarandás e tantos mais – o fogo que queima o cerrado; as águas que fazem tudo brotar, inclusive cidades – Tororó, Poço Azul, Riacho Fundo, Olhos d'água, Água Mineral, Águas Emendadas, Lindas ou Claras (Aguaceiro, de Samjahlia) seres mitológicos como as iaras (ou yaras) que nadam tanto nas águas do Paranoá como nos brejos e fontes do Maranhão natal.

O vento que espalha o fogo, mas também os cantos da passarada e das aflitas cigarras que no outubro anunciam as chuvas. E voltamos ao Grito Infinito, que nos lembra que não vivemos numa terra só de bichos, plantas, fogo, água e ar. Quem dera! Aqui vivem hoje pessoas que amam Brasília, a vida humana e as de todos os seres, mas vivem também as que são completamente indiferentes à vida, atentos apenas às máquinas, o dinheiro, objetos frios, e o poder sobre o outro, bicho ou gente, para domínio e lucro.Cito um trecho de um bilhete a mim destinado, em Quem matou as gazelas: “sei quanto é difícil declarar-se amor a Brasília diante de estranhos. Eles só conhecem os limites da Esplanada. É preciso ir ver a Água Mineral lambendo o limo das pedras, ou apreciar corujinhas quentando sol no Parque da Cidade”.

Cidade da Esperança, mas também do Campo da Esperança, que neste abril tão bonito, de céu azul e entardeceres inesquecíveis, é palco de um triste espetáculo que não preciso descrever, pois se repete em todos os cantos do Brasil. A Esperança permanece neste 21 de abril? E quando soltaremos, Brasília, Brasil, o Grito Infinito?

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