"A vida é de quem se atreve a viver".


Davi Kopenawa, segundo Viveiros de Castro, “explica a origem mítica e a dinâmica invisível do mundo, além de descrever as características monstruosas da civilização ocidental como um todo e de prever um futuro funesto para o planeta”.
A queda do céu – a natureza mítica das coisas

Zuleica Porto –

Em A máquina do mundo Carlos Drummond de Andrade faz referência, com as palavras do subtítulo acima, ao lado transcendente da realidade. Desse poema Eduardo Viveiros de Castro retirou a epígrafe do Prefácio – O recado da mata, que escreveu para A queda do céu: “Mas, como eu relutasse em responder / a tal apelo assim maravilhoso, / (…) a máquina do mundo, repelida se foi miudamente recompondo, / enquanto eu, avaliando o que perdera, / seguia vagaroso, de mãos pensas”.

Assim como o poeta, perdemos, os “civilizados”, a ligação com essa natureza mítica, em que tudo está permeado pelo sagrado – humanos, animais, montanhas, árvores, pedras.

A queda do céu, resultado da parceria entre o pensador e ativista yanomami Davi Kopenawa e o antropólogo francês Bruce Albert, nos oferece uma oportunidade de perceber, e quem sabe reconquistar, o que perdemos.  Nas palavras de Viveiros de Castro: “Davi explica a origem mítica e a dinâmica invisível do mundo, além de descrever as características monstruosas da civilização ocidental como um todo e de prever um futuro funesto para o planeta”. O livro, de 729 páginas, foi publicado em francês pela Editora Terre Humaine em 2010 e em 2015 ganhou a primeira edição brasileira, pela Companhia das Letras, na tradução de Beatriz Perrone-Moisés.

Para o povo Yanomami, a “máquina do mundo” é um ser vivo, e tudo que nela existe é protegido pelos xapiri, guardiões invisíveis e imagens espirituais de todos os seres: montanhas, rios, todas as árvores, todos os animais além de nós, das onças às abelhas e todos os demais insetos. A um tipo de abelha o xamã Davi deve seu nome: “meu último nome, Kopenawa, veio a mim quando me tornei um verdadeiro homem. Esse é um verdadeiro nome yanomami. Foi um nome que ganhei por conta própria”. Foi dado pelos xapiri, quando pela primeira vez viu dançar os espíritos da vespa kopena, seu animal ancestral. Mereceu o nome pela fúria com que enfrentou garimpeiros que invadiam as terras yanomami, derrubavam a mata e matavam seus parentes.

Viveiros de Castro destaca a complexidade do livro, que em sua estrutura envolve diversos enunciados: a do narrador Davi; a de seu sogro indígena e um grande xamã, o responsável por sua iniciação; a dos xapiri, de quem fala o narrador e que também falam por sua boca; e a do intérprete branco Bruce Albert, que navega entre a língua yanomami, o português que perpassa a narrativa, e o francês para o qual traduziu o relato. Resumindo, o antropólogo brasileiro considera o livro “uma performance cósmico-diplomática”, que envolve uma sessão xamânica, um tratado (nos dois sentidos, ressalta ele) político e um compêndio de filosofia yanomami, em que a imagem tem toda a força do conceito e no qual “a viagem alucinatória ultracorpórea ocupa o lugar da introspecção ascética e meditabunda”. Nada fácil para nós, educados na filosofia conceitual; de minha parte, três longos meses de leitura e anotações intermitentes decorreram até que me aventurasse na redação deste texto.

A estrutura do livro

O antropólogo Bruce Albert organizou o relato de Kopenawa em três partes:

  • “Devir outro” relata a sua iniciação xamânica, sob a orientação do sogro, sua concepção da cosmologia e do trabalho xamãnico yanomami;
  • “A fumaça do metal” descreve o contato de seu povo com os brancos;
  • “A queda do céu”, que começa com Davi contando de seu ativismo pelo mundo afora, denunciando o extermínio de seu povo e a devastação da floresta, e termina com “uma profecia cosmoecológica sobre a morte dos xamãs e o fim da humanidade”, resume Albert.

Além de tudo isso e do precioso Prefácio de Viveiros de Castro, o livro é enriquecido por uma coleção de mapas, um vasto material iconográfico e ilustrações de autoria do próprio xamã. E ainda, nos anexos, o leitor encontra informações sobre o etnômino, a língua e a ortografia yanomamis, sua situação no Brasil e glossários etnobiológico e geográfico, sem falar das abundantes notas e a vasta bibliografia. Biscoito finíssimo para longa e introspectiva degustação.

Diante de tão vasto material, o que faço aqui, dadas as minhas limitações, além das de tempo e de espaço, é um pequeno resumo do que me parece mais relevante para um primeiro contato com toda esta sabedoria.

Os xapiri

Davi diz que nós os chamaríamos de “espíritos”, mas são as imagens dos ancestrais animais, que vieram à existência no primeiro tempo, quando a floresta era bem jovem. Este primeiro tempo, é necessário esclarecer, foi antes da primeira queda do céu. Pois ele já caiu uma vez, conta o xamã, e hoje vivemos sobre as costas deste céu, ele é o chão onde pisamos, sustentado por varas colocadas por Omama, o ser criador na cosmologia yanomami. O céu que temos agora, alerta Kopenawa, se move e é instável. As beiradas estão bastante gastas, e os xapiri trabalham sem descanso para evitar o caos. Entre eles, destaca o macaco-aranha, que não é um macaco da floresta, mas um espírito celeste, antigo e muito poderoso. É, portanto, graças ao trabalho dos espíritos xapiri que o céu ainda não caiu. E para que eles continuem existindo e fazendo suas danças de apresentação, é necessário o trabalho dos xamãs. 

São os xamãs, que fazem os xapiri dançar. Nas palavras de Davi: “Quando o sol se levanta no peito do céu, os xapiri dormem. Quando volta a descer, à tarde, para eles o alvorecer se anuncia e eles acordam. Nossa noite é seu dia. De modo que, quando dormimos, os espíritos, despertos, brincam e dançam na floresta. São muitos, mesmo, pois não morrem nunca”. Para eles, nós somos fantasmas, porque somos fracos e morremos com facilidade. São minúsculos como poeiras de luz, mas se parecem com os humanos. Dançam sobre espelhos imensos, e seus cantos são “magníficos e potentes”. Eles só podem ser vistos pelos xamãs, que aspiram o pó de yãcoana, fabricado a partir da resina da árvore Yãkoana hi (Virola elongata ou ucuuba vermelha). Chegam por meio de trilhas “brilhantes, finas e transparentes como fios de aranha ou linhas de pesca”, que se prendem aos braços e pernas dos xamãs, descem por elas e então, diz Davi, “rasgam nosso peito, para abrir nele uma grande clareira onde farão sua dança de apresentação”. Essa dança é descrita em vários momentos do relato, pois o xamã retoma os mesmos temas em uma forma narrativa que não é a linear a que estamos habituados, seria circular, em espiral ou elíptica, confesso que não sei definir. Reproduzo um trecho de uma dessas descrições:

“A força e a violência de sua marcha fazem nosso ventre cair de pavor. Porém, apesar desse tumulto, começa-se a perceber a aproximação de suas vozes (…) distinguir os cantos magníficos dos espíritos dos sabiás yôrixiama, dos japins ayokara e dos pássaros sitipari si. Então os xapiri acabam se revelando a nossos olhos aterrorizados. Brandem imensos sabres, projetando raios de luz em todas as direções, como se agitassem espelhos à sua volta. (…) entoam sem parar, um depois do outro, cantos muito bonitos. Sopram com energia suas finas flautas de bambu e soltam gritos de alegria. (…). No tumulto e na luz cintilante, sua pintura de urucum exala um perfume inebriante. Depois, de repente, tudo para e volta ao silêncio”.

Além de trabalhar para evitar a segunda queda do céu, os xapiri combatem os seres maléficos e as epidemias (xawara) que ameaçam o povo da floresta. Limpam os úteros das mulheres estéreis, fazem crescer as plantas das roças, as árvores frutificarem e as caças engordarem. Como diz sempre Davi, “assim é”.

O povo das mercadorias

Omama é o demiurgo do povo Yanomami, o criador de tudo que há. Ele criou os yanomami (humanos, em sua língua) quando pescou a filha de Tëpërërisiki (o ser do fundo das águas) e com ela copulou. Depois criou os ancestrais dos brancos, moldando com as mãos a espuma vermelha de um rio, de uma terra distante “que vocês chamam de Europa”. Eram chamados napë kraiwa pë, de pele tão branca como o papel. Moldou depois, com uma espuma de um vermelho mais escuro, os napë pe wai, ou “verdadeiros forasteiros”, os Makuxi, os Tukano, os Kaiapó e outros povos, “gente que se parece conosco”, conta Davi Kopenawa.

Foi o irmão mau de Omama, Yoasi, o “criador da morte”, quem conduziu os filhos dos antigos brancos, “que vocês chamam de portugueses”, para o Brasil. Eles seriam filhos de Yoasi (identificado pelos yanomami com Teosi, o deus cristão), e logo que chegaram, mentiram aos habitantes, dizendo que eram generosos, amigos, e que juntos ocupariam todos estas terras. Depois, começaram a construir casas cada vez maiores, a plantar capim para o gado, passaram a maltratar a gente da floresta, apossaram-se de suas terras, envenenaram sua comida, contaminaram-nas com suas epidemias. Davi esclarece que os xamãs já sabiam da existência da gente branca, pois viam dançar seus xapiri muito antes de seus filhos chegarem aqui. “Esta terra nunca foi vazia no passado (…). Muito antes dos brancos chegarem, nossos ancestrais e os de todos os habitantes da floresta já viviam aqui. Antes de serem dizimados pela fumaça da epidemia, os nossos eram muito numerosos. Naqueles tempos antigos, não havia motores, nem aviões, nem carros. Não havia óleo nem gasolina. Os homens, a floresta e o céu ainda não estavam doentes de todas as coisas”, esclarece o xamã.

A relação do homem branco com as mercadorias lhe causa grande estranhamento, pois para o seu povo os verdadeiros bens são as coisas da floresta: as águas, os peixes, a caça, as árvores e seus frutos. Quanto aos objetos, não há sentido em acumular ou passar de geração em geração. O que sobra é doado, e os caminhos que levam às casas dos doadores são chamados de “caminhos de pessoas generosas”. Quando alguém generoso morre, a cremação é feita com muito cuidado, e suas cinzas são comidas pelos parentes e convidados; principalmente os ossos das mãos são considerados preciosos, pois com elas eram distribuídos alimentos e bens. Os objetos do morto devem ser destruídos e queimados, mesmo que seus familiares precisem deles. “Nunca guardamos objetos que trazem a marca dos dedos de uma pessoa morta que os possuía. Assim é”, informa Davi.

Quanto aos sovinas, os caminhos de suas casas são “caminhos de inimizade”, e sua morte, solitária.

Não há luto, pois ninguém sente saudade de quem ignorou o sofrimento dos necessitados.

Sendo assim, o xamã confessa que ficou confuso ao ver “aquele amontoados de mercadorias empoeiradas” quando, ainda jovem, visitou pela primeira vez a cidade de Manaus. Depois, entendeu que os brancos tratam as mercadorias como se fossem mulheres por quem estão apaixonados, e por isso empilham seus bens e trancam tudo, “por isso, sempre levam muitas chaves”.

O ouro canibal

 “O que fazem os brancos com todo esse ouro? Por acaso eles o comem?” -  perguntou Kopenawa ao Tribunal permanente dos povos sobre a Amazônia Brasileira, em Paris, em 13 de outubro de 1990. Considera os garimpeiros outra gente, “comedores de terra, seres maléficos”, de pensamento vazio e impregnados de epidemia. É urgente expulsá-los da floresta, e todos sabemos disso.

A pandemia, essa devastadora xawara, já levou preciosas vidas yanomami. Segundo dados da Rede Pró-Yanomami e Ye'kwana, em 14 de junho eram 4 mortes por covid-19 e outras 4 suspeitas de terem a mesma causa. Há 98 casos confirmados e mais 6 suspeitos. Parece pouco? Numa população de cerca de 26 mil indivíduos? Seguramente não. São dados estarrecedores, e que podem piorar muito. Diante não só da inação do atual governo, mas de sua explícita hostilidade aos direitos indígenas, estamos diante da proximidade de um genocídio, não só dos povos yanomami, mas de toda a população dos que primeiro habitaram, e continuam habitando nossas florestas. É o que diz o fotógrafo brasileiro Sebastião Salgado, que, ao lado de Lélia Salgado, vem desenvolvendo uma vigorosa campanha em defesa dos povos originários do Brasil, com a adesão de intelectuais, artistas e ativistas de diversas nacionalidades.

Dário Vitório Kopenawa Yanomami, o filho mais velho de Davi e também líder de seu povo, declarou, em videoconferência durante a 3a. Reunião Extraordinária do Conselho Nacional dos Direitos Humanos, realizada em 15 e 16 de junho, que há hoje cerca de 20 mil garimpeiros nas terras Yanomami. Os ataques a seu povo vão muito além do contágio pela pandemia, e não são de hoje. Desde as décadas de 70/80, quando Davi Kopenawa começou seu ativismo, os Yanomami são dizimados “como animais”, diz Dário Vitório, e a população foi reduzida em 22%. Diante da inação, ou mesmo da ação perniciosa do governo do Brasil, o povo Yanomami elaborou um plano de gestão territorial, com o objetivo de informar o mundo sobre os problemas da Terra Indígena Yanomami. Os lemas são “Fora Garimpo” e “Fora Covid”.

É bom lembrar que a vida dos Yanomami é fundamental para a preservação da floresta. E a floresta amazônica é essencial para a vida na Terra. Voltando ao universo mítico do povo Yanomami, termino citando as palavras de Davi:

“Se continuarem se mostrando tão hostis para conosco, os brancos vão acabar matando o que resta dos nossos xamãs mais antigos. E no entanto esses homens que sabem se tornar espíritos têm um valor muito alto. Bebem o pó de yãkoana para nos curar e proteger. Repelem os espíritos maléficos, impedem a floresta de se desfazer e reforçam o céu quando ele ameaça desabar. (…) Então, quase todos os nossos grandes xamãs morreram. Isso é muito assustador, porque, se desaparecerem todos, a terra e o céu vão despencar no caos. É por isso que eu gostaria que os brancos escutassem nossas palavras e pudessem sonhar eles mesmos com tudo isso, porque, se os cantos dos xamãs deixarem de ser ouvidos na floresta, eles não serão mais poupados do que nós”.

Tais palavras foram ditas bem antes que a Grande Xawara Covid-19 assolasse o planeta.

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