Sandra Crespo -
Depois do enterro de Evaldo dos Santos Rosa, familiares e amigos do músico fizeram nesta tarde um protesto em frente ao quartel-general da 1ª Divisão do Exército, o palácio Marechal Mascarenhas de Moraes. Eles colocaram bandeiras do Brasil com manchas de sangue e cartazes na escadaria da instituição, na Vila Militar, Zona Oeste do Rio. Ponto. Assim se encerra mais um massacre de um negro brasileiro praticado por agentes do Estado.
Evaldo Rosa, 51 anos, dirigia o carro alvejado por 80 TIROS disparados por integrantes do Exército. O homem negro foi assassinado no último domingo, em Guadalupe, subúrbio do Rio de Janeiro.
Evaldo estava com a mulher, Luciana, o filho de sete anos, o sogro (que está no hospital) e uma amiga da família. Eles se dirigiam a uma festinha de chá de bebê.
No caminho, Evaldo apenas passou por soldados com seu carro branco - e levou 80 TIROS.
Como resposta imediata ao assassinato, o Comando Militar do Leste massacrou Evaldo uma vez mais, ao divulgar que se tratava de um “bandido”. Depois de ser desmentido por testemunhas da chacina e pela Polícia Civil do Rio, o Exército assumiu o “erro”, e prendeu em flagrante os assassinos fardados.
Nesta quarta-feira, a juíza militar encarregada do caso decidiu pela prisão preventiva dos dez militares que executaram Evaldo.
As autoridades que foram pressionadas pela imprensa para comentar o caso trataram o assunto como “incidente lamentável”, algo “que pode acontecer” (Moro). “Não vou fazer juízo de valor”, esquivou-se por sua vez o governador do Rio, Wilson Witzel, que se elegeu prometendo estourar cabeças de suspeitos, com snipers posicionados estrategicamente contra os “inimigos”, nos morros onde vive a maioria dos trabalhadores do Rio de Janeiro.
Se Evaldo fosse traficante ou um reles batedor de carteira, talvez nem direito a questionamentos da imprensa teria seu assassinato.
Afinal, quantos pretos pobres são chacinados todos os dias pelas polícias no Rio e em todo o Brasil sob a desculpa de serem “bandidos”?
Não vou citar números de cadáveres produzidos pelas polícias - sobretudo as militares. Isso parece não importar mais aos brasileiros.
Afinal, os novos tempos exigem bala. “Tem que bater, tem que matar - engrossa a gritaria. Filha do medo, a raiva é mãe da covardia”. Os versos de Chico Buarque põem o dedo na ferida aberta, quase já necrosada, que desconstrói o Brasil: o racismo.
A classe média escravista frequenta igrejas, faz bazares e quermesses caridosos para ajudar a manter pobres, pobres com uniformes brancos de babás e azuis desbotados de porteiros.
A classe média brasileira só se compadece mesmo é com mortos bem vestidos que, vez por outra, são alvejados em assaltos praticados por bandidos.
E bandidos têm castas no Brasil também. Os de colarinho branco que expulsaram os “vermelhos” ganharam salvo-conduto para continuar roubando. Os milicianos que trucidam as pessoas que atravancam seu caminho são outros que têm ganhado muitos likes na terra das fake news.
A plebe preta e parda que se lixe. Sobretudo agora, que o grande herói lança um pacote “anticrime” cujo principal alicerce é a licença para matar "gente feia" pelos agentes da lei. O herói da classe média é jeca, cafona e inculto. Não sabe nem falar “cônjuge”. Diz e repete: conje. Isso eu não entendo. Pelejo, mas não entendo. Como a classe média brasileira tão metida a besta desceu tão baixo?
Eu vivo no Rio de Janeiro. Vim para cá, de vez, há um ano. Daqui não saio. Sinto um amor incondicional por esta cidade. Vim porque, além de lindo de morrer, o Rio para mim representa a síntese do Brasil do qual sinto orgulho. O Brasil plural, diverso, miscigenado. O Brasil do samba e das religiões sincretizadas. O Brasil que faz um Carnaval lindo e irreverente, que é admirado no mundo inteiro.
Agora, porém, o Rio tem um prefeito bispo que odeia carnaval. Um governador que prometeu matar como nunca antes. O Rio não tem mais terreiro de candomblé na Zona Sul. Todos foram destruídos pelos “cristãos” que querem só matar, só matar. Os terreiros que resistem têm seus seguidores perseguidos e ameaçados. E não vejo nenhuma resposta eficaz contra os ataques. Nem do governo nem do Ministério Público. Apesar de a Constituição garantir o direito livre de crença no Brasil.
Assim, nós, que amamos a liberdade, vamos nos movendo em espaços cada vez menores em busca de ar para respirar. Buscamos apoio e palavras amigas em becos, em ruelas cada vez mais apertadas.
Nós que acreditamos num país plural e generoso, no Brasil amoroso e delicado, agora pisamos em ovos para sobreviver.
Evaldo se foi. Levou 80 TIROS. Deixou uma companheira e um filhinho, vários amigos e admiradores.
Marielle foi executada há um ano, e ainda não sabemos o nome de seus algozes. Marielle, que poderia ter sido tudo, até presidenta da República.
Vamos nos calar até morrer chorando? Vamos deixar a família e os amigos de Evaldo gritando sozinhos?
Vamos assistir bestificados à aprovação do pacote do extermínio de Sérgio Moro?
Estamos entre a vida e a morte. É hora de escolher.