Marcos Bagno -
Uma das principais consequências da pressão esmagadora de uma língua imperial sobre as línguas subalternizadas são as fissuras que vão se abrindo nessas línguas, fissuras por onde a língua imperial vai se infiltrando sorrateiramente e colonizando o léxico e a gramática das subjugadas. É o que se dá hoje em dia com o inglês, que ataca todas as outras línguas do mundo de cima para baixo e de dentro para fora.
Não se trata apenas da importação de palavras: o uso de vocábulos estrangeiros é apenas a face mais visível de um processo muito mais insidioso, a ponta reluzente de um iceberg. É possível legislar contra os estrangeirismos, muitos governos fizeram isso, mas os resultados são, quando muito, pífios. E os estrangeirismos estão longe de ter a gravidade que as pessoas desinformadas lhes atribuem. Tem coisa pior. (Sim, hoje estou vestido de jacobino chauvinista!)
Uma das formas de contaminação linguística mais comum nesses casos é o chamado decalque. O decalque pode ser a simples tradução literal de um termo alienígena: cachorro-quente para hot-dog, placa-mãe para motherboard. Mas existe um tipo mais pernicioso de decalque que é o decalque semântico: consiste na atribuição para uma palavra já existente na língua dos significados e sentidos que ela tem em outra língua (sempre, é claro, na língua imperial). Por exemplo, o verbo ignorar em português (e em latim, aliás) significou durante séculos “não saber, desconhecer”, como em “Ignoro as razões de alguém votar no Bolsoasno, se razões há”. No entanto, por pressão dos sentidos do verbo to ignore em inglês, passamos a usar ignorar com o sentido de “desprezar, desconsiderar”: “O TSE ignorou velhacamente a decisão do comitê da ONU”. O mesmo se dá com a palavra evidência, utilizada no lugar de “prova, comprovação”. Ou de agenda com o sentido de “interesses próprios, pauta particular”. Ou de salvar no jargão da informática: afinal, a gente salva alguém de se afogar, salva as aparências, salva uma empresa da falência, salva um passarinho das garras de um gato, mas salvar um arquivo não tem nada que ver com salvamento, é simplesmente guardar, armazenar.
Outra consequência do imperialismo linguístico é a tradução capenga. A tradução capenga é feita sem um mínimo de reflexão demorada, na marra e a facão, quase sempre sem conhecimento suficiente do patrimônio lexical e gramatical da língua-alvo. Língua-alvo, nos estudos da tradução, é aquela para a qual se traduz, enquanto a língua da qual se traduz é chamada de língua-fonte. No nosso caso, a língua é alvo no sentido militar mesmo, porque sofre o ataque maciço da língua imperial, manipulada sem nenhuma habilidade por quem produz a tradução capenga. Vou tratar aqui de um caso específico de capengagem tradutória: a preposição inglesa about.
Alguém ouviu um galo rouco cantar que about corresponde a sobre em português. E toca a produzir monstrengos idiomáticos. Tipo: “Amor é sobre compartilhar todos os momentos da vida”. Blergh! Essa construção não tem absolutamente nenhum enraizamento na sintaxe, na morfologia, na semântica, na pragmática, na culinária, na farmacopeia, na mitologia e na alfaiataria do português: é um pedaço de pau boiando na enchente ou, como se diz em Minas, uma bosta n’água, inconsistente, flutuando sem nada que a sustente. Por que não dizer simplesmente: “Amar é compartilhar todos os momentos da vida”?
E aí vêm frases que começam simplesmente assim: “É sobre X e Y” ou “Não é sobre X e Y”. Estrupícios, estrovengas, geringonças. Tem até uma musiquinha fuleira de auto-ajuda só com versos começando com “é sobre”. Espere um minuto que vou ali vomitar e já volto.
Outra vítima da tradução capenga de about é a locução trata-se de. A criatura lê ou ouve algo como “What this book is about?” e tasca “Do que se trata esse livro?”. Cacilda Becker! A locução trata-se de não pode ter sujeito, ela é impessoal, um livro não “se trata de” nada. Só se deve usar trata-se de para retomar algo que foi dito antes: “Não se surpreenda com as declarações balofas do presidente golpista. Trata-se de um energúmeno pusilânime medíocre”. Seria possível traduzir a frase inglesa acima por: “Do que trata esse livro?” / “Qual o assunto desse livro?”. Em sua fase de exílio londrino, Caetano Veloso compôs diversas músicas em inglês, e uma delas tem o título Nostalgia ou “That’s what rock’n roll is all about”. Já pensou esse verso nas mãos de um/a praticante da tradução capenga? Nem me arrisco a imaginar. Que tal simplesmente “Isso é que é o rock’n roll” ou “O rock’n roll é isso e ponto” ou qualquer coisa que não seja “rock’n roll é sobre” ou “rock’n roll trata-se de”.
Outro problema sério com trata-se de, além de traduzir capengamente o about e da atribuição de um impossível sujeito, é a flexão do verbo no plural. Assim: “O judiciário não para de cometer arbitrariedades. Tratam-se de atentados à democracia”. Que o judiciário atenta diuturnamente contra a democracia é fato, mas trata-se, no singular, de arbitrariedades. Não se pode fazer concordância entre um verbo e um complemento se entre os dois aparecer uma preposição, como o de de trata-se de. A preposição barra qualquer concordância. Seria estranho dizer ou escrever “Precisam-se de mais verbas para a educação” ou “Mexem-se nas aparências mas não nos problemas reais”, com plurais descabidos. A presença do se em trata-se de revela que se trata de uma locução impessoal, que não pode ter sujeito: ninguém diz ou escreve “A educação precisa-se de mais verbas”, assim como também não deve dizer nem escrever “Esse livro trata-se de um clássico da área”, nem muito menos “Esses livros tratam-se de clássicos da área”. Aqui, de novo e sempre, basta o simples e meigo verbo ser: “Esses livros são clássicos da área”, assim, de cara limpa, sem botox.
A tradução capenga reflete a sujeição acrítica ao que nos é imposto pelo imperialismo linguístico, é a contrapartida idiomática de todas as demais sujeições com que nos dobramos, canina e servilmente, aos ditames dos centros da mundialização do capitalismo neoliberal histérico, o mesmo que promove golpes de Estado, financia grupos de extrema-direita como MBL e outros excrementos, seduz as estúpidas elites locais a entregar de bandeja todas as riquezas nacionais, como o pré-sal, o aquífero Guarani, a floresta amazônica etc. etc. Nenhum dos nossos milhões de analfabetos funcionais vai produzir coisas do tipo “amar é sobre compartilhar” ou “esse livro trata-se de um clássico”: são capenguices típicas de uma pequena parcela que se julga muito letrada e acha chique macaquear um inglês que ela mal conhece, enquanto acusa de “falar errado” quem diz “menas” ou “pra mim fazer”, formas que têm muito mais razão de ser, do ponto de vista da morfossintaxe do português, do que capenguices do tipo “é sobre”.
E não me faça bocejar de tédio dizendo que sou preconceituoso. “É sobre” saber do que se está falando por ter estudado muito o assunto, não “se tratam de” pitacos improvisados. Mas nem por isso deixa de ser, também, uma tomada de posição ideológica explícita.