"A vida é de quem se atreve a viver".


Marcos Bagno: "A palavra precarização não faz parte do léxico neoliberal porque o neoliberalismo disfarça a precarização sob diversos eufemismos: flexibilização, reforma, inovação, empreendedorismo, modernização".
Precarização - I

Marcos Bagno –

(O linguista Marcos Bagno dividiu suas reflexões sobre a precarização em quatro partes: do trabalho, da política, do planeta e da vida. Hoje publicamos as duas primeiras partes. Amanhã, as outras duas).

Das muitas palavras que poderiam descrever o neoliberalismo, eu escolhi uma que, me parece, recobre praticamente todos os aspectos da vida individual, social e planetária nestes tristes dias que correm: é a palavra precarização. Ela não faz parte, é claro, do léxico neoliberal, porque o neoliberalismo disfarça a precarização sob diversos eufemismos: flexibilização, reforma, inovação, empreendedorismo, modernização etc. Mas qualquer análise mínima do discurso em que essas palavras aparecem com sentido positivo revela o que realmente está por trás delas: a precarização.

Vamos começar pela precarização do trabalho.

O que muitos analistas têm demonstrado é que nós estamos vivendo, neste início de século 21, situações bastante semelhantes às do final do século 19, quando o capitalismo se apoderou definitivamente dos meios de produção e atingiu ritmos até então desconhecidos, graças à recente Revolução industrial, que permitiu a criação de máquinas, mecanismos e sistemas automatizados capazes de elevar os volumes de produção a índices inéditos.

Na Europa ocidental, a industrialização atraiu para as cidades milhões de pessoas que viviam até então na zona rural, fazendo surgir as vilas operárias e as periferias onde as trabalhadoras e os trabalhadores se apinhavam. As condições de vida dessas pessoas eram apavorantes. Não existia nada parecido com leis de regulamentação do trabalho. Crianças de 12 anos já eram recrutadas pelas fábricas, onde elas trabalhavam de dez a doze horas por dia. Os salários eram insuficientes para uma vida minimamente decente. As famílias operárias ocupavam imóveis insalubres, sem água corrente, sem condições mínimas de higiene, sem eletricidade, embora a eletricidade já existisse na indústria para movimentar as máquinas. A fome era tudo o que se podia obter com essa exploração desumana da mão de obra.

A vida das famílias operárias no final do século 19 era uma forma de escravidão: não era preciso praticar os castigos físicos, bastava deixar morrer de fome toda uma população que era facilmente substituível pelas novas gerações, aliás pelas novíssimas gerações, já que as crianças desde pequenas eram utilizadas na indústria. Não causa surpresa, portanto, que tenha sido precisamente nesse período que os movimentos revolucionários – socialistas, anarquistas e comunistas – tenham surgido.

O famoso Manifesto comunista assinado por Marx e Engels, foi escrito em 1848, ano de grandes agitações populares em toda a Europa contra a exploração desumana da mão de obra. A teoria marxista sobre as relações de trabalho, sobre a economia política do capitalismo, sobre a organização da sociedade dominada por uma classe burguesa industrial é fruto direto desse contexto marcado pela precarização absoluta das condições de vida da classe operária. E foram justamente as revoltas e revoluções que acabaram levando à constituição dos direitos trabalhistas, ao estabelecimento de limites para a exploração da mão de obra.

Pois nós vivemos hoje uma situação que os historiadores, cientistas políticos e economistas consideram muito semelhante à do final do século 19. A precarização do trabalho está na ordem do dia do projeto neoliberal. Nós tivemos um primeiro e grave desmonte das leis trabalhistas no Brasil depois do golpe que derrubou o governo da presidenta Dilma Rousseff em 2016, que teve como resultado nada menos do que uma redução pela metade das ações movidas por empregados contra empregadores. E o atual desgoverno ataca com força ainda maior o que restou dos direitos dos trabalhadores, além de ameaçar com uma “reforma” da Previdência que não quer reformar nada, mas destruir tudo.

A precarização do trabalho não ocorre somente no Brasil. Em alguns países a precarização vem recebendo o nome de uberização. A empresa Uber, que se vale da mão de obra abundante de motoristas não profissionais, se transformou no grande símbolo dessa precarização. A pessoa cumpre uma determinada tarefa, recebe por ela, pagando uma comissão absurda de 25%, e não tem nada, nada, nada em contrapartida como proteção de seu trabalho: não tem férias, não tem descanso remunerado, não tem 13º salário, não tem vale alimentação, não tem seguro saúde, não a tem a quem recorrer em sua defesa, não tem absolutamente nada. Se essa pessoa tiver algum problema de saúde e não puder trabalhar, ela também fica sem ganhar. A uberização é um fantasma que ronda todas as profissões. Nas faculdades particulares já existe o professor-Uber: não tem contrato de trabalho, não tem nenhuma cobertura social, ganha apenas por hora-aula. Durante os meses de férias, não ganha. É contratado no início do semestre e o contrato só vale até o final do semestre.

A precarização do trabalho atinge de forma trágica as populações dos países mais pobres. Dezenas de milhões de pessoas no mundo estão submetidas a condições de trabalho semelhantes à escravidão, inclusive no Brasil. Mesmo na Europa, os países menos desenvolvidos da União Europeia, como a Romênia, se tornaram grandes fornecedores de mão de obra barata para os países mais ricos. A precarização do trabalho vai de mãos dadas com a maior concentração de riquezas jamais ocorrida na história da humanidade: existe 1% de pessoas que detêm a mesma riqueza produzida pelos 99% restantes.

O homem mais rico do mundo, Jeff Bezos, dono da Amazon, tem uma riqueza pessoal estimada em 112 bilhões de dólares. Para se ter uma ideia do que isso significa, o PIB do Uruguai é de 84,6 bilhões, ou seja, Jeff Bezos tem mais dinheiro na conta bancária do que toda a atividade econômica de um país independente, ele tem uma vez e meia mais dinheiro que o Uruguai todo. No Brasil a situação é a mesma: 6 homens brancos detêm a mesma riqueza produzida por 100 milhões de trabalhadoras e trabalhadores.

O sociólogo alemão Sighard Neckel, da Universidade de Hamburgo, diz que essa situação deve ser qualificada como “neofeudalismo”, porque a riqueza do mundo está distribuída entre poucas pessoas que detêm seus feudos, junto com seus servos e suas servas. O capitalismo chegou a tal ponto que deixou de ser capitalismo e se tornou uma nova forma de feudalismo. O pequeno círculo de bilionários se perpetua por meio da herança e do casamento de interesse, exatamente como na era feudal.

A precarização do trabalho e o neofeudalismo também se refletem numa outra forma de precarização: a precarização da política.

A política deixou de ser a arte de governar para se tornar a arte de governar em favor dos interesses da grande finança internacional. O caso dos Estados Unidos, em que a presidência é ocupada por um megabilionário, Donald Trump, é a face mais visível disso. Mas existem outros casos menos espetaculares, mas nem por isso menos sintomáticos. É o caso do atual presidente da França, Emmanuel Macron, que se elegeu com o discurso enferrujado de “nem de direita, nem de esquerda”, mas que representa de fato os interesses do grande capital, que são sempre interesses de direita. Ele próprio atuou na grande finança e é um milionário.

Quando explodiu a grande crise econômica de 2008, causada exatamente pela espiral alucinada da grande finança internacional, muitos governos saíram em socorro dos grandes bancos, despejando bilhões de dólares e de euros para salvar o mundo financeiro, submetendo ao mesmo tempo as populações a uma política de austeridade que tem levado ao empobrecimento radical de milhões de pessoas em países, como os da Europa, que sempre foram conhecidos por sua qualidade de vida.

O modelo tradicional da democracia burguesa, da representatividade das diferentes forças políticas de um país, está desaparecendo gradualmente em favor de sistemas políticos superficialmente democráticos mas profundamente autoritários. Em diversos países da Europa, a extrema direita com inspirações fascistas está no comando: Rússia, Polônia, Hungria, Áustria, Itália. Nas recentes eleições para o Parlamento Europeu, os candidatos que representam essas forças políticas reacionárias, xenófobas, racistas obtiveram uma grande quantidade de votos. As populações se sentem justificadamente traídas pelos partidos tradicionais, que se entregaram à ideologia neofeudal da grande finança, e como forma de protesto aceitaram o canto de sereia da extrema direita.

No caso do Brasil, a precarização da política é óbvia, explícita, para não dizer obscena. Nós temos 52% de população não branca, mas o Congresso Nacional é ocupado em 75% por gente branca. As mulheres respondem por apenas 10,5% da Câmara dos Deputados. Temos também a assustadora bancada chamada BBB, do boi, da bala e da Bíblia, que representa os interesses dos grandes senhores feudais do agronegócio, daqueles que defendem a proliferação das armas de fogo e a redução da maioridade penal, e os que se valem da religião para roubar a população pobre e fazer campanha contra tudo o que foi conquistado nos últimos 200 anos em termos de direitos humanos e cidadania.

Mas a precarização da política no Brasil atingiu seu ápice nas eleições do ano passado, quando um defensor de tudo o que existe de pior na história da humanidade foi levado, por meio de uma indústria poderosa de notícias falsas e de manipulações, ao cargo de presidente da República. Junto com ele, foram eleitos homens e mulheres em nome de um partido que agrega criminosos confessos, corruptos de toda ordem, mas principalmente pessoas que sofrem de evidente déficit cognitivo, psicopatas e alucinados que se empenham ardentemente em favor da ignorância, da estupidez, da violência, do genocídio, do combate aos direitos fundamentais do ser humano.

E são pessoas assim que ocupam os ministérios, a começar pelo da Educação, nas mãos de uma criatura ridícula, perversa, burra, incompetente e obtusa. Se no resto do mundo a política está precarizada, no Brasil ela está ridicularizada, achincalhada, transformada no que pode haver de mais infame e imoral.

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(Amanhã será publicada a segunda parte deste artigo - Precarização - II)

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