Alexandre Ribondi -
Abelim Maria da Cunha morreu. Podemos dizer de maneira mais clara: Angela Maria morreu sábado (29/9), à beira de completar 90 anos - ela nasceu em 1929.
Mas sempre haverá quem pergunte: quem é Angela Maria? E não basta responder que ela, durante várias décadas, foi a dona da maior e mais bela voz do Brasil no século XX. Isso porque ela foi mais, muito mais.
Era dona de um repertório maluco, que inclua sucessos como Babalu (da fase cubana), Falhaste, Coração (da fase mexicana), Garota Solitária (da fase samba-canção) e Gente Humilde (da fase de repertório elogiável: a composição é de Garoto, Chico Buarque e Vinicius de Moraes).
Mas mesmo cantando músicas que, com todo o respeito, provocava risos por seu parentesco com o mau gosto, era impossível não voltar a ouvir para poder se deliciar com a qualidade da voz da intérprete. Ela, a Angela Maria.
Que, como sói acontecer, nasceu paupérrima no interior do estado do Rio de Janeiro, filha de dona de casa com pastor evangélico - e foi no coro da Igreja Batista que começou a cantar e a amar a música, como ela gostava de afirmar, em seus momentos de recordação. Teve a companhia de seis homens e, ao que parece, todos a trataram mal e enfiaram a mão nas suas poupanças, que não eram poucas, já que ela foi a Rainha do Rádio, o maior prêmio que se dava a uma cantora no Brasil da metade do século XX e que, desgraciadamente, como dizem os hispanohablantes, já está sendo esquecido.
Mas foi aos 50 anos, na década de 1970, que conheceu um rapaz de 18 anos e, ele sim, se apaixonou por ela, com sinceridade de coração. Angela Maria e Daniel d’Angelo foram ser felizes para sempre. Assim, e como ela não podia ter filhos, Angela e Angelo adotaram quatro crianças: Angela Cristina, Liz Angela, Rosângela e, que surpresa, Alexandre.
Mas ainda é possível perguntar - quem é Angela Maria e por que a sua morte tem que ser comentada e gravada na memória?
Dizem que a francesa Édith Piaf (eu sei que as más línguas da última geração hão de perguntar quem é Piaf) era grande fã de Angela Maria. Quando, há uns 20 anos, passei parte do dia na companhia da grande-cozinheira-grande-cantora-cabo-verdiana Cesária Évora, ela disse, com os olhos baixos e com o seu jeito tímido que, do Brasil, gostava mesmo era de “Nelson Gonçalves, Nelson Ned e Angela Maria”. E parece que era a mais pura verdade, porque quando eu disse algo como “parece que o Caetano Veloso gosta muito da senhora”, ela só respondeu “humrum” e voltou falar do Nelson Ned e da Angela Maria, a Sapoti - como também era chamada.
Nos anos 60, o estilista Dener Pamplona, pioneiro da moda no Brasil, gozava da amizade com a cantora. Não só isso, eram íntimos mesmo. Tanto que ela mesma gostava de contar que Dener, com suas camisas de babados, com as olheiras profundas de poeta romântico-gótico, e seus deliciosos achaques, costumava telefonar para Angela Maria, na calada da noite, para dizer que estava triste e deprimido. Ela entrava no carro, ia para a casa dele e o adormecia ao som de Babalu, cantada ao vivo, ali, só para ele.
Elias Regina chegou nos anos 60 e até morrer, nos anos 80, foi a cantora que mudou tudo no cenário da Música Popular Brasileira. Além disso, enfrentou a ditadura militar com garras de mulher revolucionária. Sua voz enfeitiçava o País. E admitiu logo: “Eu tento imitar a Angela Maria”. Ney Matogrosso lançou um disco, em 1994, com o nome de Estava Escrito, dedicado inteiramente à sua musa.
Qualquer brasileiro com informação razoável é capaz de concordar que Elis Regina e Ney Matogrosso são esteios da música brasileira e que eles serão recordados como grandes intérpretes do que melhor se faz no Brasil. Se eles se basearam e prestaram homenagem a Angela Maria, fica também fácil de entender que eles não teriam as referências que têm, o repertório que criaram, nem se lapidaram para alcançarem a qualidade técnica que conseguiram ter, se não tivessem como referência a cantora de Gente Humilde.
Então, que esteja aí a importância de Angela Maria. Ela é a base, um dos nascedouros, da música que criamos e cantamos no Brasil desde os anos 1950.
Desconhecê-la pode ser um erro sem tamanho, para quem deseja se tornar respeitado com canções e vozes de boa qualidade porque, mais do que nunca temos que saber e repetir, que não existe futuro sem o conhecimento do passado. Por isso é que em cada nota musical brasileira, em cada repertório, em cada show, em cada hit parade e até mesmo em cada gorjeio de passarinho matinal, lá estão um pouco da alma dessa mulher inesquecível.