"A vida é de quem se atreve a viver".


Alexandre Ribondi
O bom gay

Alexandre Ribondi -

O programa Casos de Família, apresentado todas as tardes no SBT, mostrou, numa quarta-feira de setembro, tema que chamou a minha atenção.

Tratava-se de "O problema não é ele ser gay. É querer que todo o mundo saiba". Fiquei para ver e o que os familiares dos homossexuais que foram ao programa insistiam em deixar claro é que não tinham nada contra a orientação sexual das pessoas.

O que eles pedem é que os homossexuais sejam discretos com os seus desejos, seus amores, e seus beijos. O som da palavra 'discreto' me lançou para dentro de uma máquina do tempo que me levou aos anos 70, época em que começamos a discutir o que a sociedade heterossexual esperava de nós, para que eles conseguissem conviver conosco, sem desconforto e livres de situações embaraçosas.

A primeira, e talvez única medida, numa sociedade que começava a estar disposta a discutir o assunto e a ser até mesmo vagamente tolerante, era sermos discretos.

Enquanto isso, a tolerância deles consistia em nos aceitar em empregos, nos convidar para festinhas de aniversário e churrascos, ir conosco a bares e bebermos juntos. Eles também seria autores de frases como "o cara é gay mas é legal" ou "taí um gay que sabe se comportar".

Criou-se, então, a cultura do bom gay, que passou a existir para ser tolerado e nunca para ser aceito. Isso porque o bom gay deixou de esconder a sua orientação com pretensas namoradas, mas seu namorado nunca foi convidado a participar da roda.

Deixar de lado a namorada de mentira foi um grande passo, a bem da verdade. Nos anos 60, na minha cidade no Espírito Santo, havia um homem, pela casa dos 30 anos, professor secundário, que tinha uma namorava bonita, sorridente, de pouquíssimas palavras, e com as pernas gravemente retorcidas pela poliomielite.

Assim, as coisas se encaixavam: ele não a satisfazia porque gostava de rapazes e ela não fazia exigências porque, naqueles dias e naquela cidade tacanha, ela, portadora de deficiência física, acreditava que não mereceria nunca nada melhor. Mas se o bom gay deixou de esconder a sua orientação, ele ainda não tocava no assunto e, justamente por isso, era bom.

Quando convidado para um almoço com os colegas de trabalho, ele ia - mas sozinho. E ninguém falava do assunto, fingindo acreditar que ele era solteiro assexuado. Se brigasse com o namorado, ninguém daria um pio sobre o assunto.

E se se separasse, depois de anos de vida conjugal, poderia chegar no trabalho com os olhos inchados de choro e insônia, mas nunca diria o motivo, para evitar constranger a heterossexualidade reinante, que não saberia o que dizer diante de tamanha anomalia.

Para eles, na época, homossexual não amava nem sofria com separações. Homossexual apenas fazia sexo. E era um ser solitário, comparado às baratas que somente saem à noite.

O bom gay foi uma das grandes invenções para garantir a manutenção da sociedade heterossexual, que não precisaria fazer nada, não seria levada a revisitar seus valores profundos, não teria que ensinar aos seus filhos o respeito às diferenças.

Mas no final dos anos 70, ainda com os militares empoleirados no poder, grupos de homossexuais brasileiros começaram a ser formados e colocaram a boca no trombone. Em Brasília, surgiu o Grupo Homossexual Beijo Livre.

Em São Paulo, havia o grupo Somos. Juntos, em vários estados da federação, os gays passaram a lutar não somente pelo fim da ditadura, mas pelo início das reivindicações de direitos e respeito absoluto. Inverteram a ordem: a homossexualidade não era mais um problema. Problema a ser resolvido era a homofonia.

A partir daí também, a sociedade heterossexual descobriu que nem todo gay é bom. Tem também os que falam de sua vida pessoal, os que choram abertamente quando sofrem por amor, os que contam os detalhes da lua da mel, os que conquistam amores na frente das pessoas.

E os que se abraçam e se beijam na frente de todo o mundo. Nesse ponto, sintomaticamente, muitos passaram a receber o que recebem os seres maus: pontapés, chutes, socos e tiros. Por isso é que no ano de 2016 do século XXI, eu me sinto no direito de ficar horrorizado quando pedem discrição.

Em outras palavras, pretendem exigir que cada um de nós seja um bom gay, para não provocar constrangimentos.

Mas por que as pessoas se sentem à vontade de dizer isso a um homem adulto?

Porque para eles o homossexual nunca é um homem maduro e competente, nunca é cidadão com total posse de seus direitos.

É um ser que deve receber instruções de bom comportamento, para aprender a conviver com os outros, os normais. Eles somente serão felizes quando conseguirem reduzir as diferenças a pó.

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