"A vida é de quem se atreve a viver".


Editora UnB contribui com o pensamento crítico sobre a cidade. As soluções para os graves problemas urbanos continuam em debate.
Brasília, entre o utópico e o real

Inês Ulhôa -

A Editora UnB vem publicando, ao longo dos anos, textos críticos e reflexivos, frutos de pesquisas, sobre Brasília e seu desenvolvimento. Neste mês do aniversário de 57 anos da Capital do País, a editora divulga as obras dedicadas à cidade.

Cidade planejada, desenhada por Lúcio Costa e inspirada nos manifestos dos Congressos Internacionais de Arquitetura Moderna (CIAM) e no bucolismo das cidades-jardim inglesas, Brasília foi inscrita na lista do Patrimônio Mundial Cultural e Natural da Unesco, quando chegou aos 30 anos, em 7 de dezembro de 1987.

Em 1990, Brasília é tombada como patrimônio histórico nacional pelo governo brasileiro, que, por meio do Iphan, inscreve a Capital no Livro do Tombo Histórico, regulamentando seus usos e funções dentro do perímetro preservado, com a intenção de manter as características do Plano Piloto e “a qualidade de vida” que se almejava.

Primeiro bem contemporâneo a merecer a distinção de Patrimônio Cultural da Humanidade e considerada cidade-símbolo do Modernismo, Brasília é, entre as cidades planejadas no mundo, uma das que mais atrai a atenção de estudiosos do planejamento urbano, principalmente por seu projeto urbanístico considerado exemplo de um ideal utópico socialista, o que lhe atribuiu um expressivo significado na história mundial da arquitetura e do urbanismo.

Mas Brasília nos traz também a possibilidade de observar, em seus vastos horizontes, suas peculiaridades, levando em conta sua história urbanística e um olhar sobre as contradições e conflitos da cidade que se tornou metrópole em curto espaço de tempo, tendo seus espaços públicos invadidos por cimento, asfalto, ferro e vidro.

Esse agigantamento de Brasília trouxe, inexoravelmente, problemas de toda ordem – ambientais, desemprego estrutural, violência urbana, grilagem de terras públicas e privadas, delinquência juvenil, transportes urbanos deploráveis, entre tantos outros. Sua periferia, estruturada obrigatoriamente, ainda como parte de sua implantação, hoje ultrapassa os limites do Distrito Federal, incorporando cidades do Entorno, trazendo pessoas que se deslocam freneticamente no dia-a-dia, pois é na Capital que buscam o emprego, os hospitais, as escolas e o lazer, visto as cidades-satélites e o Entorno serem desprovidas principalmente de equipamentos culturais.

A cidade e suas dinâmicas

Na história de Brasília muitos fatos aconteceram e muito sobre ela já se escreveu, monumentos foram erguidos, muitas histórias contadas, mas ainda há muito por revelar.

A paisagem urbana de Brasília é algo, sim, a ser visto e lembrado, o cotidiano dos lugares, o pulsar das ruas e dos carros e ônibus que cruzam a cidade, a ordem e a desordem, enfim, uma coisa a ser percebida, a ser explorada, a ser visitada, a ser olhada, compreendida e sentida como concerto para o corpo e a alma, despertando a fruição estética.

Mas, para além da fruição estética que Brasília proporciona é preciso compreender o lugar que ocupamos e da percepção de nós mesmos, como sujeitos ativos, capazes de interagir e se envolver com seus fenômenos sociais, culturais, políticos e econômicos.

Essa observância da lógica que move as cidades permite a compreensão da produção dos espaços pelo homem.

Nessa perspectiva, a Universidade de Brasília, em sua característica multidisciplinar, tem-se dedicado a estudar questões teóricas e históricas sobre a realidade da Capital Federal.

Debates, pesquisas e estudos tornaram-se obras de referência sobre a cidade, tendo como dimensão explicativa a economia, a política, a cultura, a geografia e os aspectos sociais que cercam toda uma comunidade.

A questão principal, para os autores das diversas obras publicadas pela Editora UnB dedicadas à análise de Brasília, está na interpretação multidisciplinar que a cidade proporciona, com suas dinâmicas próprias.

É sabido que as inevitáveis transformações provocadas pela expansão do modo de produção capitalista, que foram se reproduzindo no século 20, fizeram com que a cultura urbano-industrial se impusesse sobre as demais culturas.

Notadamente, em Brasília, esse modo de produção do espaço e da apropriação e uso da terra aceleraram sua transformação em metrópole, como atesta o professor Aldo Paviani, que coordenou e ajudou a coordenar várias dessas edições dedicadas a explorar as diversas feições da cidade: “Ao contrário do que foi idealizado pelos fundadores, ela deixou de ser cidade aprazível onde se decidiria os ´elevados destinos do Brasil´para se tornar cidade assemelhada às demais metrópoles brasileiras”.

Esse fenômeno vai criar novas necessidades, provocar mudanças e, assim, alterar a configuração da cidade, verificando-se o caráter contingente da acumulação do capital na criação de novos lugares e sua rápida urbanização, pela ruptura de fronteiras e a consequente concentração no espaço de forças produtivas e do poder político e econômico, acentuados pelo impacto das políticas neoliberais. Inventar sempre uma nova necessidade humana é a chave para a expansão do capitalismo sobre a vida urbana e a cultura que ela engendra.

É onde a geopolítica do capitalismo impõe a sua força, incorporando e criando valor a espaços que passam por transformações profundas, mediados por interesses de grupos, dando a sua lógica aos territórios, abrindo novos espaços para a acumulação, formando e reformando as paisagens geográficas.

O professor Paulo Bicca lembra que para Lucio Costa e para os que pensavam como ele, em Brasília deveria ser colocada em prática uma das tantas recomendações da Carta de Atenas, qual seja, a construção de uma cidade não pode ser abandonada sem programa, nas mãos da iniciativa privada. Ou seja, esta era uma questão fundamental “para a implantação daquilo que era proposto sob a forma de Plano”, portanto, “a iniciativa privada teria de agir conforme o programa urbanístico rigidamente definido por aqueles que o haviam concebido […] tendo em vista impedir que os agentes da ´desordem urbana` nela tenham livre curso”.

As contradições despontam

Com apenas 57 anos de idade, Brasília é hoje uma cidade heterogênea e complexa, para aonde, desde o seu início, migraram milhares de brasileiros atraídos pelo imaginário de uma cidade promissora, funcional, com igualdade de classes e vista como um trunfo progressista, diante de um Brasil atrasado, pois estava inserida no projeto de desenvolvimento e industrialização do ambicioso Plano de Metas do presidente Juscelino Kubitschek, que tinha a ousadia de modernizar o país, ainda sob um incipiente processo de industrialização. É como se o futuro da Nação estivesse bem ali, naquela região ainda por explorar.

É dentro desse vasto universo da Cidade-Capital que os pesquisadores da UnB mergulharam e constataram que é possível ver, material e simbolicamente, as possibilidades efetivas da vida cotidiana, ou seja, ter a compreensão do modo como os indivíduos se relacionam com os lugares e onde encontram os subsídios que dão sentido a seu próprio lugar no mundo.

Uma visão crítica das relações socioespaciais é um passo fundamental para a compreensão do significado de Brasília no contexto das políticas urbanas, com observância das suas contradições, como apontam Luiz de Pinedo Quinto Jr e Luiza Naomi Iwakami: “Brasília apresenta-se hoje como uma cidade praticamente sem contradições se observarmos apenas o Plano Piloto. […]

Porém, a segregação ocorre na exata medida em que se pôde preservar este aspecto límpido do plano original conjuntamente com a formação e expansão das cidades-satélites, estas, sim, uma certa reprodução do que ocorre em todas as cidades, relegadas até hoje a um certo abandono no que tange ao fornecimento de equipamentos coletivos urbanos e demais ´benefícios´ do ´centro´”.

A rigor, a intenção inicial era que os operários de sua construção não se estabelecessem nela, voltassem para suas cidades de origem, pois a Capital foi pensada para abrigar o Estado; seria uma cidade para desempenhar o papel de Capital Político-Administrativa do País; uma cidade exclusivamente burocrática para nela residir os funcionários públicos dos poderes federais e de setores de apoio, sem espaço também para o desenvolvimento industrial.

Portanto, não haveria lugar para os operários da construção, nem para áreas periféricas, embora, na época de sua inauguração, a cidade já contasse com uma população de pioneiros que chegava a, aproximadamente, cem mil pessoas.

Não havia no Plano Piloto de Lucio Costa, nem no planejamento da Novacap projetos para a criação de cidades-satélites no Distrito Federal.

Os que construíram Brasília não estavam predestinados a nela habitar.

Entretanto, a realidade mostrou-se bem diferente. Os operários organizados exigiram moradia e, ainda em 1958, portanto, dois anos antes da inauguração, construiu-se a primeira cidade-satélite,

Taguatinga, situada a 20km do centro, como núcleo-dormitório; em 1960, surgiu Sobradinho; e, em 1961, o Núcleo Bandeirante, a que se seguiram as outras. Portanto, entre o imaginado e o real muitas histórias se sucederam.

Nesse sentido, a urbanização no Distrito Federal foi adquirindo “um perfil socioespacial segmentado e segregado: de um lado, ‘o espaço dado’, onde predomina o controle, o assistencialismo e o paternalismo, e de outro, ‘o espaço conquistado’, fruto dos movimentos das classes populares por melhores condições de moradia, infraestrutura e transporte”.

A estratificação social e espacial se impôs, seguindo o padrão das demais cidades brasileiras, onde as camadas mais baixas e despossuídas da população habitam as periferias.

Esse quadro contraria a cidade idealizada como fraterna, onde todos, independente de suas condições econômicas, pudessem conviver harmonicamente, conforme o projeto de unidades de vizinhança concebidas por Lucio Costa.

Entretanto, mesmo esse desenho foi incapaz de superar a lógica da urbanização capitalista.

Sobre os rumos do crescimento excessivo da Capital e a distância entre a utopia que  a originou e a realidade, onde se tornou visível a segregação social, o professor José Geraldo de Souza Jr, ex-reitor da UnB, aponta a segregação como um dos graves problemas estruturais da Capital.

Diz ele que o imaginário idealizador da cidade, “na configuração de uma alternativa de vida urbana democrática e participativa, encontrou seu limite nas condições da sociedade capitalista, injusta e desigual.

O próprio sucesso do desenvolvimento urbano da cidade gradativamente desarticulou a lógica da utopia original e operou a segregação das camadas populares, reorientando o espaço urbano com a estratificação das classes sociais na península e nas cidades-satélites”.

Esse quadro traz enormes problemas para a Cidade, pois “crescendo a taxas superiores à média nacional, pressiona os recursos naturais, requer mais espaços habitacionais e de serviços, como nos comércios das entrequadras, adequações da Cidade pensada e a que se efetivou agigantada”, diz o professor Aldo Paviani, em artigo publicado no jornal Correio Braziliense.

Assim, desconstrói-se o mito fundador da Capital e o real desponta. 

Em Brasília, como em outras grandes cidades, “imagens construídas artificialmente tendem a confrontar-se dialeticamente com imagens do real, representado pelo cotidiano de seus habitantes”, observa Lucia Cony Faria.

Do espaço inventado ao espaço apropriado

Por certo, Brasília produziu seu próprio espaço social, com sua evolução natural e característica de qualquer cidade, ampliando seu território para além das áreas habitacionais rigidamente planejadas.

De sua vocação inicial, meramente burocrática, desponta para a sua vocação de metrópole, incluindo as suas cidades-satélites num corpo só, pois ela não pode mais ser considerada apenas como o Plano Piloto de Lucio Costa, ambiente privilegiado pela sua beleza arquitetônica e seu paisagismo.

Pena que tenha ficado apenas na crença a cidade como uma grande comunidade igualitária.

Portanto, reinterpretar seus atributos, além de seus aspectos morfológicos, é procurar, no dizer de Frederico Holanda, “recuperar, de uma invenção milenar [a rua], suas características fundamentais: o espaço por excelência da troca, da reunião, dos conflitos e da superação, em busca permanente do novo”.

Assim, entre utopia e realidade, a transformação da sociedade vai se fazendo nesse reinventar dos indivíduos, produzindo formas alternativas de sociabilidade pela ocupação dos espaços públicos e nutrindo, com ideias novas, a população culturalmente.

Ademais, a reflexão e o debate sobre as cidades revelam simultaneamente a crescente necessidade de rever conceitos, tal como a globalização (e seu uso político), e a emergência de valorização do lugar ou dos lugares como reveladores das realidades sociais.

Pois a cidade, representada em suas diversas manifestações, sejam estéticas ou político-culturais, é lugar onde agem forças múltiplas, pois evolui, expande-se e desafia “aqueles que desejam decifrar seus enigmas e suas contradições”.

Afinal, se a cidade é obra dos homens, seu cenário está sempre se modificando, conjugado às forças sociais que nela se interagem pelas relações cotidianas, pois “constitui o espaço da concentração, da população, dos instrumentos de produção, do capital, dos prazeres e das necessidades”.

A seguir, os livros publicados pela Editora UnB dedicados ao estudo da cidade-capital:

Brasília: Controvérsias ambientais – Aldo Paviani e Luiz Alberto de Campos Gouvêa (Orgs.)

Brasília: Dimensões da violência urbana – Aldo Paviani, Frederico Flósculo P. Ferreira e Ignez Barbosa (Orgs.)

Brasília: Ideologia e realidade – espaço urbano em questão Aldo Paviani (Org.)

Brasília: Moradia e exclusão – Aldo Paviani (Org.)

Brasília 50 anos: Da capital a metrópole – Aldo Paviani, Ignez Costa Barbosa Ferreira, Frederico Flósculo Pinheiro Barreto, Lucia Cony Faria Cidade e Sergio Ulisses Jatobá (Orgs.)

Brasília: A metrópole em crise – Ensaios sobre urbanização -Aldo Paviani (Org.)

A conquista da cidade: Movimentos populares em Brasília -Aldo Paviani (Org.)

Brasília 50 anos: Arte e cultura – João Gabriel Lima Teixeira

Brasília: Diferentes olhares sobre a cidade – Cléria Botelho da Costa e Eloísa Pereira Barroso

De Nova Lisboa a Brasília: A invenção de uma capital (séculos XIX-XX) – Laurente Vidal

Expresso Brasília: A história contada pelos candangos – Edson Beú

Os filhos dos candangos: Brasília sob o olhar da periferia – Edson Beú

Narrativas a céu aberto: Modos de ver e viver Brasília – Cremilda Medina (Org.)

Itinerância dos artistas: A construção do campo das artes visuais em Brasília (1958-2008) – Angélica Madeira

Nas asas de Brasília: Memórias de uma utopia educativa (1956-1964) – Eva Wairos Pereira, Laura Maria Coutinho, Maria Alexandra Rodrigues, Cinira Maria N. Henrique, Francisco Heitor de M. Souza e Lucia Maria da Franca Rocha (Orgs.)

História da terra e do homem no Planalto Central: Eco=história do Distrito Federal – Paulo Bertran

Revista Humanidades, número 56 – Brasília, cidade, pensamento

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