Marcelo Zero -
Há leis que não precisam estar escritas. São parte constituinte da natureza humana. Estão gravadas na nossa alma, ou, se quiserem, no nosso DNA.
Os modernos as consideram os elementos que constituem o direito natural. Os antigos as chamavam de leis divinas.
São leis que estão acima das leis escritas pelos homens, das interpretações jurídicas conjunturais e, sobretudo, dos humores dos poderosos de plantão.
Sófocles, em Antígona, foi quem melhor traduziu a superioridade da lei natural, assentada na Justiça, da lei positiva, assentada no Poder.
Na peça, Antígona desafia o terrível rei Creonte, que havia proibido o enterro de Polinice, irmão da protagonista principal da tragédia. Ela tenta enterrar seu irmão, conforme determina o costume religioso, a lei divina. É presa e condenada à morte por Creonte.
Numa das grandes passagens da literatura mundial, Antígona contesta a legitimidade da decisão de Creonte:
“..........e a Justiça, a deusa que habita com as divindades subterrâneas, jamais estabeleceu tal decreto entre os humanos; nem eu creio que teu édito tenha forças bastante para conferir a um mortal o poder de infringir as leis divinas, que nunca foram escritas, mas são irrevogáveis.......”
De fato, o enterro e as cerimônias funerárias, que os antigos gregos incluíam nas leis divinas, são indicativos da nossa humanidade. Antropólogos consideram que um dos indícios do surgimento da humanidade é justamente o costume de enterrar e reverenciar os mortos.
As cerimônias funerárias fazem parte do sagrado, de algo que é profundamente humano. Por isso, elas são universais e transcendem culturas, épocas e leis.
Creonte, ao impedir cruelmente Antígona de enterrar seu irmão, afronta o humano e a justiça, e demonstra um poder que não tem nenhuma legitimidade.
Pois bem, o Brasil neofascista de hoje está cheio de “creontes”, autoridades que, embora poderosas, sofrem de nanismo moral e carecem de senso de humanidade e justiça.
O impedimento de Lula velar seu irmão equipara-se à crueldade abjeta de Creonte contra Antígona. Com um sério agravante: a lei brasileira, a lei escrita, dava ao melhor presidente da nossa história o direito de fazê-lo.
Mesmo assim, nossos “creontes” inventaram “problemas logísticos” para impedir que a lei natural e a lei escrita fossem cumpridas.
Estranhamente, esses problemas logísticos não se manifestaram quando Battisti foi preso na Bolívia. De imediato, a PF enviou um jatinho para recolhê-lo. Ademais, o PT ofereceu todo o transporte e a logística para levar Lula até São Bernardo. Em vão.
Os “creontes” afirmaram que havia “risco de fuga”. Como Lula, um homem de mais de 70 anos, e figura internacionalmente conhecida, poderia escafeder-se é mistério insondável.
O que não é mistério insondável é que o medo não era com uma possível fuga de Lula. O medo era, é e será com o que Lula representa. Lula representa tudo o que eles odeiam mais.
Lula é aquela pobre criança do sertão nordestino que deveria ter morrido antes dos 5 anos, mas que sobreviveu. Lula é aquele miserável retirante nordestino que veio para São Paulo buscar, contra todas as probabilidades, emprego e melhores condições de vida, e conseguiu. Lula é aquele candidato que não devia ter chegado ao poder, mas chegou. Lula é aquele presidente que devia ter fracassado, mas teve êxito extraordinário. Lula é o excluído que devia ter ficado em seu lugar, mas não ficou.
Lula simboliza a possibilidade de um outro mundo, de um outro Brasil. Lula é a ideia de um mundo justo e a esperança de um país melhor.
Para eles, Lula não deveria existir, mas existe.
Daí o ódio, daí a perseguição incessante e a cruel lawfare. É o mesmo ódio que animava Creonte.
Na peça de Sófocles, Creonte afirma que nunca um “inimigo” lhe despertará empatia, mesmo após a morte. Em resposta, Antígona exclama que não nasceu para partilhar de ódios, mas apenas de amor.
O medo leva ao ódio, que, por sua vez, leva à crueldade e à indecência.
McCarthy, um Creonte moderno, fez toda sua carreira baseada no medo e no ódio aos “comunistas”, assim como hoje muitos fazem carreira no Brasil com base no medo e no ódio a Lula e ao PT.
Nessa cruzada, McCarthy, como acontece agora no Brasil, atropelou a justiça, o humano e todos os direitos, escritos e não escritos.
Chegou ao seu fim, um fim solitário, quando enfrentou o advogado Joseph Welch, que defendeu o Exército norte-americano de acusações de “infiltração comunista”.
Ante a acusação de que um dos auxiliares de Welch era um “comunista”, o grande advogado pronunciou sua fala imortal: “Até o momento, senador, acho que não havia conseguido medir bem sua crueldade ou sua irresponsabilidade. Não vamos mais continuar a assassinar esse rapaz, senador. O senhor já fez o suficiente. Afinal, o senhor não tem senso de decência?”
Creio que, ante essa absurda proibição de Lula velar seu irmão, aqueles que têm um mínimo de consciência e humanidade puderam medir a crueldade, o ódio e a desumanidade dos nossos “creontes”.
Só resta perguntar, como Joseph Welch, afinal, vocês não têm decência?