"A vida é de quem se atreve a viver".


Marx sobrevive. Há 200 anos previa que se o capital não se socializar, a sociedade se descapitaliza e sucumbe.Estamos chegando perto disso.
A dimensão encoberta

José Carlos Peliano (*) -

O mundo moderno mais se assemelha a um complexo redemoinho de atores, peças e enredos neuróticos do que a um conjunto de nações que chegaram a um ponto de relativa estabilidade de relações democráticas e coletivas.

Nem Shakespeare ou Freud ou Jorge Amado ou Galeano, entre tantos outros, dariam conta de compreender e explicar o que ocorre países afora a despeito de eventuais, poucas e localizadas experiências históricas diferenciadas. Muito embora cada um dos quatro em seus escritos e em obras de naturezas distintas tenha se aventurado de uma forma ou de outra a lançar ideias e pistas esclarecedoras.

A sanha impetuosa e impiedosa do avanço capitalista na era neoliberal tem deixado marcas por vezes exitosas em várias áreas da atividade tecnológica em contraste ao rescaldo descabido e desumano do uso e abuso dos indivíduos tornados em grande escala trabalhadores ou imigrantes ou desempregados ou miseráveis. Célebres personagens já investigaram a fundo essas questões, sobressaído Karl Marx como o que revelou a face déspota do capitalismo sendo o primeiro a bradar ao mundo essa infâmia ultrajante, permanente e progressiva desde a Revolução Industrial.

Há por trás dessa trágica máscara, no entanto, uma dimensão negada porque ignorada e bem escondida debaixo da própria vilania da construção capitalista. Que se vangloria do domínio dos movimentos terrestres, das águas internas e externas e dos ares com suas maravilhosas empreitadas científicas e técnicas por meio de todos os tipos de veículos, embarcações e objetos voadores. Mas que só os disponibiliza para poucos, os herdeiros da acumulação primitiva que se tornou posteriormente intensiva, predatória e avassaladora, de família a família, de grupos a grupos, de companhia a companhia.

Por que se chegou a essa situação tem a explicação dada por Marx em sua obra sem idade, O Capital, sobre a qual o economista austríaco Joseph Schumpeter comentou no início do século passado que depois de Marx somente existiram economistas contra ou a favor dele. Sua importância na análise do capitalismo é seminal, grandiosa, grandiloquente. Pode-se discordar de sua visão crítica, mas não há como ignorá-la tampouco minimizá-la. Como canta Lenine na Balada do Cachorro Louco, a obra de Marx fere feito bala, “ela é explosão, ela vai, ela fica, ..., ela fere rente”.

É da obra de Marx que também se tira a referência à dimensão encoberta pela chegada e avanço do capitalismo nas sociedades pré-industriais. Trata-se da organização natural do trabalho cooperativo. Onde cada camponês executava seu trabalho de acordo com sua capacidade em colaboração com os demais ou da família ou do grupo de famílias. E a produção comunal primitiva servia para atender tão somente ao consumo familiar. A produção adicional era estocada para períodos de entressafra.

Nessas condições o trabalho humano implicava “originalmente, uma interação orgânica com a terra, meio e objeto de trabalho, e com a comunidade de trabalho, enquanto membros de um único corpo social natural que se produz e reproduz continuamente a fim de conservar e aprimorar sua existência” (p. 19) Peliano, JC, Acumulação de trabalho e mobilidade do capital, UnB, 1990.

Exemplos primitivos sobre a solidariedade na produção humana para subsistência e para a construção da infraestrutura básica de sobrevivência são encontrados nas comunidades indígenas espalhadas ao redor do mundo.

Aqui mesmo no Brasil existem ainda tribos isoladas, sem o contato com civilizados, cuja vida gira em torno da cooperação natural entre seus membros realizando tarefas da sobrevivência tribal que ajudam à manutenção das aldeias. Testemunhos de pesquisadores que visitaram os Zoe’s, por exemplo, sob permissão da Funai, verificaram essa atividade comunal.

Tipos semelhantes de cooperação e solidariedade entre os membros ocorrem nos reinos vegetal e animal cada um segundo suas características e especificidades. Desmond Morris em seu livro The Human Zoo, Dell, 1969, relata sua experiência no estudo dos macacos entre os quais verificou semelhanças muito próximas deles com mulheres e homens. A vida grupal e sua sobrevivência traz a marca da cooperação entre os membros em meio à hierarquia entre os machos alfas e os demais. Destaca que em seus habitats naturais os macacos não atacam seus semelhantes adultos ou crianças, nem desenvolvem doenças típicas de tensões nervosas como úlcera e obesidade, entre outras coisas (p. 11).

Por sua vez, Peter Wohlleben, Sextante, 2015, em seu livro A vida secreta das árvores, relata a desconhecida e fantástica vida escondida das árvores. Revela que “as árvores igualam os pontos fortes e fracos entre si. Não importa se têm o tronco grosso ou fino: todos os espécimes produzem a mesma quantidade de açúcar por folha. Esse mecanismo acontece nas raízes. No subterrâneo acontece essa troca ativa, segundo a qual quem tem muito cede e quem tem pouco recebe ajuda”(p. 20).

Humanos, animais e plantas são por natureza cooperativos, solidários e complementares em seus grupos específicos. Trazem desde sempre a marca da ajuda mútua, entendida em sentido amplo onde caiba até mesmo a falta de ajuda quando um ou outro membro se nega por alguma razão. Mas negação, nesse caso, não significa recusa definitiva, nem embate, tampouco superioridade.

Ao contrário do capitalismo que trouxe em seu lugar a divisão, a exploração, a competição, a hierarquia e a meritocracia. Não há mais espaço para a cooperação natural, para a igualdade de oportunidades, para a convivência pacífica e sem preconceitos.

A desigualdade social e econômica que impera no mundo contemporâneo desde o advento do capitalismo tende a aumentar se quem detém mais não se convencer que é preciso ceder para quem tem menos sob o risco mais cedo ou mais tarde de derrocada de todo o sistema. Como um castelo de cartas. Acumulação de capital sem demanda não realiza valores. Produção com desemprego e queda de renda não retorna ao circuito produtivo. Especulação financeira tem um fim se não há riqueza material que a garanta.

Onde o neoliberalismo teve sucesso no mundo? Só nos livros e nas cabeças de conservadores e oportunistas governantes e teóricos de fins de semana. Se o capital não se socializar, a sociedade se descapitaliza e sucumbe. Há 200 anos atrás Marx previa isso, estamos chegando perto.
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(*) José Carlos Peliano é economista, poeta e escritor

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