José Carlos Peliano (*) -
sei desse tiro
e tiro desse tiro
o veio de onde veio
e onde ele destrói onde
Ela se foi e levou junto mais de 46 mil esperanças que a elegeram por renovação, renova ação, ação de nova gente, de mulher nova, vibrante, bela e altaneira. Não importa a cor, mas a cor importa sim nesse país embranquecido a ferro, fogo, trato e preconceito. Ela veio da favela, trazida pelas águas da maré onde as ondas brilham no mar de todos, de todas as cores, de todas as faces, de todos os desejos, de todos os futuros. O mar é ela, a maré é ela.
Marielle Franco, franqueava conversa, escuta, troca de experiências, carinho, apreço, energia, solidariedade, ideias e ideais de uma vida possível, melhor, menos travada, mais diversa, democrática, natural.
Em 15 meses mais que 1 projeto por mês, da ação dava sua resposta aos seus eleitores e ao povo do Rio. Quis mais, sempre mais, para consertar o mal feito, rebater o contrafeito, propor saídas melhores. Mas era o mínimo, o máximo mínimo, que podia para uma pessoa só, uma mulher guerreira, que veio do povo, do resto do povo empurrado para as favelas, para as bordas da sociedade ainda marcadamente meritocrata, parcial e escravocrata.
Seus méritos o sangue nas veias pulsando mudanças, o coração saltando do peito em busca de chamamento para ação, sua cara a beleza da mulher negra, direta, segura, decidida, mas de doce energia na fala e no olhar. Méritos que tanto cativaram quanto incomodaram.
Como pode? Diriam os conservadores, opacos, vazios e reacionários. Pois pode, soltou-se ela dos grilhões do escravagismo ainda existente camuflado por preconceitos, hábitos, costumes e regras ditas e não ditas em nossas avenidas, condomínios fechados, mansões, resorts, shoppings, palácios de governo e de justiça, paneleiros oportunistas desmobilizados.
Seguiu pelos caminhos da luta e da liberdade defendendo e brandindo direitos, congregando companheiros de propósitos, de fé, de irmãos camaradas.
Embora mínima, uma entre milhões, ela não era só ela. Era muitas numa só e muitas outras eram ela. Levava o incômodo, a perturbação, a ameaça, o perigo de toda aquela que intimida, enfrenta, rebate e cobra. Por certo uma cobra nos calcanhares dos poderes burgueses discricionários constituídos.
Precisava ser afastada do olho do furacão que provocava com suas ações, atitudes, palavras e gestos. A nossa sociedade caquética, desigual, injusta e perturbada não suporta alterações na desordem vigente muito menos de uma mulher negra.
A Casa Grande repudia movimentos da senzala que tentam questionar os privilégios, favores, benefícios e incentivos reinantes. Casa grande de retrocessos, senzala cheia de avanços.
Um dia a casa cairá porque tudo o que é sólido desmancha no ar, nem que seja pela paciência e tenacidade de retomar a luta quando o caminho é destruído. O destino do embate é o embate em si mesmo onde a senzala se faz casa grande e esta se arruma como pode para não se tornar casa pequena.
Não tenho o pé na cozinha como disse descaradamente um ex-presidente branco desse país, mas tenho todas as cores que a vida me deu, me dá e dará de amizades, amores e ideais de fé, coragem e luta. A combinação das cores é que dão graça, beleza e vivacidade à vida. A luz branca clareia, mas também cega e paralisa, a noite preta escurece, mas também acalma e convida.
O tiro que parou Marielle varou em todos nós que lutamos por dias melhores de convivência pacífica, liberdade respeitada, democracia compartilhada. Partiu o tiro de nossa sociedade desajustada, que se firma na hipocrisia, na força e na justiça parciais para conterem a força e a raça plena do povo. Querem manter a desordem vigente para continuarem roubando direitos e conquistas.
Outras milhares de Marielles com certeza virão para derrubar os muros que separam a Casa Grande da senzala que tentam manter a todo custo. Nada como um dia depois do outro e a noite no meio.
Mas o tiro também atingiu os próprios pés dos reacionários, conservadores, bandidos de plantão e ocasião. Eles serão vingados mais cedo ou mais tarde. Os que destroem acabam sendo destruídos ou pela guerra entre eles mesmos ou pela autonomia conquistada de um povo livre, honesto, trabalhador e puro como Marielle na luta pelos seus direitos! Na construção de uma vida melhor sem os grilhões que tentam manter a ferro, fogo e tiro.
Marielle partiu no dia de comemoração do nascimento de Albert Einstein e no dia da partida de Stephen Hawking. Foi ela conhecer onde o tempo e o espaço se dão as mãos e o infinito dá as mãos a outros infinitos. Ela terá a sua vez de ser maior do que foi e dar suas mãos negras, benditas, à apoteose dos universos.
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(*) José Carlos Peliano, economista, poeta e escritor.