"A vida é de quem se atreve a viver".


João Almino: "Entender a obra de Thomas More é indispensável para a tarefa de entender o mundo atual".
Reflexões sobre a obra de Thomas More

Inês Ulhôa -

"Utopia" é “aquele livro que uma nação ou grupo de nações ou o longo do tempo decidiram ler como se em suas páginas tudo fosse deliberado, fatal, profundo como o cosmos e capaz de interpretações sem fim… é um livro que as gerações humanas, premidas por razões diversas, leem com prévio fervor e misteriosa lealdade” (Jorge Luis Borges). É com essa epígrafe que João Almino começa o seu primeiro ensaio..

Ao justificar sua reflexão sobre a obra de Thomas More (1408-1535), João Almino diz que não há dúvida de que essa obra pode ser considerada um clássico. Passados mais de 500 anos de sua publicação, "Utopia" continua nos interessando e gerando novas interpretações.

No primeiro ensaio de sua obra, Almino traça um resumo do clássico de More, demarcando o lugar legítimo de sua especificidade sem deixar escapar a possibilidade de se identificar nesse clássico “traços que poderiam ser atribuídos ao realismo político, a ideologias que surgiram mais tarde, como o liberalismo e o socialismo, bem como a germes de despotismo”. Para tanto, Almino convida o leitor a examinar com atenção a descrição que More faz dos costumes, das leis e instituições.

Segundo ele, por meio da dialética dos diálogos e do confronto entre os personagens é possível descortinar a reflexão que o livro "Utopia" provoca – deixa espaço para o dissenso, as opiniões contrárias, as lacunas e esquecimentos, portanto, “não deve ser lido como um tratado prescritivo ou normativo e não é um ideário”.

Essas questões perpassam os argumentos de Almino, nos quais inviabiliza simplificações sobre a obra de Thomas More. Para ele, Utopia não sugere receitas prontas para serem aplicadas. Pelo contrário, de acordo com Almino, o que o grande pensador humanista Thomas More e seus personagens nos dizem é nos interrogar, nos fazer pensar e nos lançar desafios.

Decifrações de Utopia

Em seu segundo ensaio, Almino reafirma que há muito em Utopia a ser refletido sobre as relações externas da ilha imaginária da Utopia, termo que, em grego, significa “não há tal lugar”. Para Almino, vale a pena fazer uma leitura sistemática sobre os temas da paz e da guerra, das finanças e do comércio entre os povos, da colonização e da imigração em Utopia, “para dele extrair conclusões sobre seu sentido político e filosófico no campo das relações internacionais”.

Ao rastrear esses elementos, Almino narra que More usou sua própria observação de uma negociação diplomática ao ser enviado por Henrique VIII como embaixador a Flandres, na defesa dos interesses dos mercadores de Londres, e depois em Antuérpia. Utopia pode, então, ser interpretado “sobretudo como uma crítica à Inglaterra das primeiras décadas do século XV […], também a outros Estados europeus, como a França, explicitamente citada”.

Segundo Almino, Thomas More pensou a utopia no contexto internacional bem antes de Rousseau ou Kant, “porém, num sentido diverso do ideal da unidade política europeia do primeiro ou da constituição cosmopolita do segundo, em que se respeita a soberania e autodeterminação dos povos”.

Neste estudo criterioso da obra clássica de Thomas More, João Almino desvela como, no plano das relações internacionais, Utopia reflete principalmente sobre a política de intervenção, bem como sobre as táticas e estratégias de guerra.

Esses dois ensaios de João Almino provoca inquietação ao pensamento ao propor a leitura de Utopia em suas variantes, principalmente em relação ao fato de que More talvez não tivesse ideia de que, ao fazer ressalvas às instituições da ilha Utopia, “estava também criando uma distopia, uma utopia negativa, ao imaginar aquela ilha”. Segundo ele, “o inferno, como a Utopia, está cheio de boas intenções. Muito já se comentou sobre a organização totalitária de uma sociedade que se quer transparente para si mesma e onde não há divisão entre o público e o privado. Mas distopia existe também nesta ordem internacional, unilateral, em que as regras são impostas por um só ordenador do mundo, autossuficiente e todo poderoso intérprete do bem, que se crê detentor dos valores da civilização”.

Por essas, razões, o livro de João Almino é indispensável para se entender a obra de Thomas More, bem como a tarefa de entender o mundo atual. É como disse o escritor Alberto Manguel: “Somos o que lemos, mas somos igualmente o que não lemos”.

Você não tem direito de postar comentários

Destaques

Mais Artigos