Geniberto Paiva Campos -
Sociólogos e historiadores talvez se vejam obrigados a rever a contagem dos períodos de liberdade democrática plena e violenta repressão ditatorial na história política contemporânea da América Latina.
Subcontinente colonizado pelos ibéricos - espanhóis e portugueses - não consegue manter relações saudáveis e duradouras com a democracia.
Talvez seja mais correto falar em períodos caracterizados como “hiatos democráticos”, permeando regimes autoritários permanentes.Valendo lembrar que o somatório das ditaduras da Espanha (Franco) e de Portugal (Salazar) perfaz um total aproximado de um século de totalitarismo, violência e negação dos direitos humanos.
Tomando o Brasil como exemplo, no período de aproximadamente cem anos – 1920/2016 – o país viveu longos anos de regime ditatorial e curtos períodos de democracia, permeados por tentativas de golpes estado grotescas, outras”bem-sucedidas”, e desastrosas intentonas fascistas e comunistas.
Parece que a estabilidade democrática não desperta grande entusiasmo entre as elites brasileiras, que são, verdadeiramente, donas do poder.
E qualquer possibilidade de ascensão social e econômica das massas, que eventualmente acompanha períodos de abertura democrática, é prontamente repelida como anátema. E seus ousados agentes são violentamente reprimidos.
Nas últimas décadas mudaram-se os nomes e as siglas partidárias. Mas os personagens são os mesmos. Getúlio, Jango, Brizola, Lula, Dilma seriam os atores de um imutável enredo cujo desfecho final é sempre a previsível retomada do poder pela elite. Através de golpes. Com as mais diversas denominações. Mas, essencialmente, “golpes de estado".
Incapazes de conquistar o poder pelo voto livre e soberano, as elites se atribuem o direito divino de exercê-lo pelo arbítrio e pela força. Ou pela esperteza. Foi sempre assim. E assim será.
Historicamente as elites brasileiras procuram fazer associações estratégicas com outros segmentos da sociedade brasileira, contando sempre com o apoio da mídia, na conquista de adeptos para suas empreitadas golpistas, em busca do poder total. E aplica-se, quando necessário, o uso do “jornalismo de guerra”.
Os partidos envolvidos são todos parecidos. Praticamente os mesmos. União Democrática Nacional (UDN) x Partido Trabalhista Brasileiro (PTB).
As hostes golpistas da UDN de Carlos Lacerda e seus puros, intocáveis políticos e intelectuais, todos contra a “corrupção”. Exemplo, o mar de lama do Catete, jamais comprovado, mas de imenso potencial midiático.
Despertando a incontida indignação moral das classes médias do país. Ingênuas apoiadoras das elites. Que levou o presidente Vargas ao suicídio, no fatídico agosto de 1954. Golpe perfeito? Quase.
Com o vice Café Filho antecipando-se ao papel de Michel Temer. Enquanto Vargas “saiu da vida para entrar na História”, Café Filho saiu da história pela porta dos fundos.
Na década seguinte o enfrentamento dos mesmos partidos: UDN x PTB. O pretexto: a criação mágica, pelo PTB, de uma “República Sindicalista”, sob a égide do “Comunismo Ateu e Desumano”. (Hoje, parece risível).
As classes médias foram às ruas, marchando “Pela Família, com Deus, pela Liberdade”, em 1964. Na prática, defendendo o autoritarismo e a desigualdade. Provavelmente, Deus tenha muito pouco a ver com isso. Queda e exílio de Jango. Que propugnava pelas Reformas de Base. Apoiado por mais de 70% da população brasileira.
Resultando numa longa noite de trevas e ausência de liberdade. Um golpe duradouro. Novamente,com o apoio da sociedade civil e das Forças Armadas.
O motivo real dos dois episódios políticos, tão próximos e assemelhados: a ascensão das massas trabalhadoras, melhora do salário mínimo, implementação de políticas de soberania nacional, criação de um parque industrial brasileiro, implantação de um projeto de reformas modernizadoras do Estado. Pauta herética. Absolutamente inaceitável para as elites brasileiras.
Como sempre, e eternamente, comprometida com o retrocesso. Saudosa dos velhos e bons tempos em que não havia a Lei Áurea, direitos trabalhistas, greves e manifestações populares.
Com a retomada da democracia formal, em 1985, surge um novo partido, o PT. Partido dos Trabalhadores, herdeiro não assumido do PTB de Vargas, Jango e Brizola.
Trazendo como grande novidade uma liderança verdadeiramente popular, não originária da classe média. Um operário sem curso superior. Sem titulação acadêmica. Um “ádvena” (estrangeiro) na política. Oriundo do movimento sindical. Declaradamente “não comunista”.
Luis Inácio da Silva, codinome Lula. Após várias tentativas frustradas, finalmente, em 2002, o Partido dos Trabalhadores elege o seu candidato presidencial. Para espanto interno e enorme simpatia no plano internacional. No papel da antiga UDN a frente política PSDB/DEM e alguns partidos menores.
Um novo governo trabalhista - Os governos Lula/Dilma são a continuidade do trabalhismo de Vargas/Jango adaptados, obviamente, ao século XXI.
Por mais que tal constatação possa causar polêmicas. A análise histórica mostra as inegáveis semelhanças entre os dois períodos.
À pauta trabalhista de Getúlio/Jango, o PT do Lula adicionou as políticas sociais de inclusão das massas na economia e na produção.
Com o incremento do poder de compra dos assalariados ocorreu a criação/ampliação de um mercado consumidor interno. Reforçando os alicerces da economia. O qual possibilitou o enfrentamento de uma das maiores crises internacionais – cíclicas e previsíveis – do capitalismo, em 2008. Já no segundo governo Lula.
Como esperado, os infalíveis sensores que detectam riscos e ameaças aos interesses da elite econômica rentista, perceberam que havia se instalado no Brasil mais um governo trabalhista.
Foi então acionada a mídia conservadora, historicamente cúmplice da elite econômica para fazer o seu trabalho habitual: criar e divulgar verdades que mesmo sem ter expressão no mundo real, seriam assumidas como incontestáveis pelos brasileiros das classes médias. Sempre ingênuas e despolitizadas. Dispostas a assumir a defesa das elites.
Para espanto e indignação dos donos do poder, a coalizão que que governou o Brasil de 2003/2016 ampliou a antiga pauta dos governos trabalhistas. Existe uma lista interminável de realizações. E com forte apoio popular, ganhou todas as eleições presidenciais que veio a disputar.
Era preciso apelar novamente para o tema infalível da “corrupção”.
O assalto aos cofres públicos. O desvio de verbas. O enriquecimento ilícito. O caixa dois. E seus apelidos midiáticos: mensalão, petrolão, lava jato.
Eternos chavões. Sempre disponíveis na mobilização de cidadãos despolitizados. Desprovidos de senso crítico. Que se recusam – por incapazes – ao debate político qualificado. Dócil massa de manobra. Com enorme dificuldade de entender nuances da realidade política e econômica onde estão inseridos. Atuando contrariamente aos seus interesses de classe social.
Na impossibilidade de manter o debate político real. E frente às inesperadas, inegáveis, realizações dos governos “neotrabalhistas”, apelou-se para o velho e confiável tema da “corrupção”.
Em seu novo livro, “A Radiografia do Golpe - entenda como e porque você foi enganado", o sociólogo Jessé Souza defende a instigante tese da hegemonia da elite econômica sobre a elite intelectual.
Cuja tarefa – comprada a preço justo, na dependência da posição do intelectual cooptado na hierarquia acadêmica–seria tornar a “esfera econômica”, supostamente livre do peso de ter de se justificar moralmente.
E nisso residiria a sua singularidade em relação às outras esferas sociais.
Esse tipo, não tão sutil, de controle exercido pela elite econômica se amplia e se exerce sobre as elites política, jornalística, jurídica, literária.
Criando uma “moralidade própria”, no sentido de peculiar. Na qual torna-se necessária a capitulação moral desses agentes sociais.
Que assim tornam-se defensores intransigentes da ideologia capitalista, em seu atual formato neoliberal. Tornando-se ativos colaboradores dos seus projetos de poder total. Abdicando de qualquer resistência moral aos desígnios dos seus novos mestres e parceiros).
Os exemplos no Brasil, nas últimas décadas, são vários. E extremamente didáticos. Perceptíveis aos mais desatentos observadores: Intelectuais, escritores, jornalistas, políticos, juristas. Os novos militantes do neoliberalismo. Causando espanto aos que acompanhavam suas biografias e trajetórias pessoais.
O surpreendente perfil dos golpistas do Século XXI na América Latina
E, enfim, chegamos a mais um golpe desferido contra um governo trabalhista. Ou se preferirmos, o governo dos trabalhadores. Dilma Roussef, presidente eleita pelo voto majoritário dos brasileiros – criminosa sem crime – foi afastada do cargo pelo Senado Federal.
Um golpe mais sutil. Elaborado com (muita) hipocrisia pelos seus autores. Mas cujas consequências serão duríssimas para o Brasil. Afetando a sua economia, o seu crescimento e desenvolvimento. O seu futuro. As suas liberdades democráticas. E a gravíssima – talvez irreversível – perda da soberania.
E, necessariamente, criando um estado policial. Condição para o novo sistema ditatorial manter o poder total. E já se percebe os seus primeiros e inquietantes sinais.
Para quem considerar um exagero, vale relembrar a Rússia Czarista que gerou o stalinismo, com a KGB e a Alemanha nazista das primeiras décadas do século XX, com a Gestapo.
Para os que divertem com as trapalhadas do medíocre ministério Temer, seria conveniente prestar atenção nos ministros que quase não falam, mas que calados e distantes, atentos aos seus mestres, literalmente “entregam o serviço” que lhes cabe nessa nova missão de dilapidar as riquezas do país.
Resolvida a farsa tragicômica do impeachment, cabe aguardar mais um capítulo a ser encenado no Congresso Nacional. Um episódio - mais um - do folhetim político que envergonha o Brasil. Iniciado no inesquecível domingo, 17 de abril de 2016, na Câmara dos Deputados, e concluído em 31 de agosto no Senado Federal.
Na agenda, o julgamento pelo plenário da Câmara da perda do mandato do seu ex-presidente, Eduardo Cunha.
A República, e os seus novos governantes, tremem de receio. Qualquer que seja o desfecho.
Os cidadãos brasileiros e os verdadeiros democratas perguntam aos seus botões: - como foi possível chegarmos a tal situação? A resposta não está no vento.
A culpa disso tudo que estamos assistindo cabe ao Partido dos Trabalhadores e à sua estranha mania de ganhar eleições presidenciais. Inaceitável para os padrões das elites. É sempre bom lembrar: Os donos do poder.
Finalmente, uma homenagem aos senadores, que com coragem e bravura cívica desmedidas, defenderam a democracia, num julgamento sem nenhuma chance para a justiça.
Entre os quais destacamos: Fátima Bezerra, Gleisi Hoffman, Vanessa Graziotin, Lindbergh Farias e Roberto Requião. Parabéns senadores. Vocês honram a classe política brasileira.
A luta continua.
Para evitar a consolidação do golpe!
Pela resistência democrática!