Max Telesca (*) -
Quando iniciei a escrever este artigo, logo após a eliminação, mais imatura, menos prematura, da Seleção Brasileira de Futebol para a Croácia, e do jogo monumental entre Argentina e Holanda nas quartas-de-final, no qual os argentinos superaram o desastre de tomar dois gols no final, com grande controle emocional e avançaram nos pênaltis, o Marrocos ainda não havia superado a poderosa Espanha, lançando-se heroicamente às semifinais e efetuado a maior façanha de um selecionado árabe e do continente africano. Com este novo elemento no cenário, titubeei em redirecionar o texto para acrescentar a torcida pelo Marrocos no título e no objetivo central do escrito.
Entretanto, mesmo hoje dividindo minha torcida entre Marrocos e Argentina, seja por razões pessoais, em função de minha família ter uma ligação estreita com os marroquinos, seja por razões sentimentais de buscar sempre torcer para os países periféricos, a razão de ser do texto continua intacta a partir de um dos argumentos da construção da hipótese: a rivalidade entre Brasil e Argentina deve se restringir ao duelo entre as equipes no jogo, nos gramados, no campeonato. Depois disso, há uma importância em se tornarem aliados. Explico.
Primeiramente, há uma dificuldade fundamental no desenvolvimento do raciocínio, especificamente sobre a tentativa do estabelecimento da razão em área predominantemente afeita aos sentimentos e emoções. Segundo o raciocínio de um grande amigo, o brilhante psiquiatra Roberto Pierobom Lima, não escolhemos para quem torcemos; a simpatia nasce ao natural ou, mais costumeiramente, é introjetada na infância pelos pais ou outro ente querido aficionado por futebol. Eu não lembro direito quando e como comecei a torcer pelo Grêmio, mas sei da influência do meu avô materno e do meu pai na tarefa.
Outro fator influente tem a ver com um termo muito na moda: pertencimento. Quem torce por um time de futebol, ou de outro esporte, busca fazer parte de um grupo social. Assim, como um dos maiores – senão o maior - de todos os grupos sociais é o Estado-nação, é natural a torcida pela seleção representante do país onde nascemos. Por isso não vemos brasileiros torcendo para Uruguai ou Argentina, nossos países vizinhos mais tradicionais no esporte, nossos rivais regionais.
Pertencer a um grupo social a partir de uma imposição ou herança cultural familiar ou, posteriormente, por uma escolha onde a racionalidade não é a diretriz determinante, parece ser a tônica iniciática do ato de torcer e há algo mais interessante ainda: a fidelidade canina do torcedor. Mudar de time no meio da jornada da vida é algo muitíssimo incomum. É mais fácil naturalizar-se ou adquirir uma outra cidadania, trocar de religião, de partido político, e eu arriscaria de que até de sexo se tem mais notícia de mudança do que trocar de time. É a traição imperdoável ao clã, um gesto de ingratidão. Mudar de time, virar a casaca, é um pecado grave.
Mas seria uma traição, após a eliminação do Brasil, torcer para a Argentina numa Copa do Mundo? Cometeríamos a heresia de esquecer a Copa de 1978, quando fomos garfados pelos castelhanos? Ou a eliminação em 1990, quando Maradona, do meio-campo, partiu endiabrado em direção à grande área brasileira, deixando para trás quatro jogadores, atraiu toda a marcação e meteu Caniggia na cara do gol de Taffarel para marcar? Não creio, entendo os fatos, em razão de valores maiores.
Zuenir Ventura, no ótimo “Mal Secreto: Inveja” sintetiza a diferença entre cobiça, ciúme e inveja. A cobiça, segundo o autor, seria a vontade incontrolável de ter algo do, ou algum afeto ligado ao, outro. O segundo, o ciúme, o medo de perder algo ou alguém, e a terceira, um pérfido e ordinário sentimento, quase sempre inadmitido, seria a vontade de que o outro não tenha algo. Este último, o mais deletério, a busca pelo fracasso do outro, a vontade da derrota alheia.
Depois da eliminação neste campeonato mundial, foram muitas as piadas, os memes sobre uma suposta dupla derrota brasileira: a eliminação e a passagem dos hermanos para as semifinais, mas esquecem os secadores, baseado no sentimento negativo da inveja, de não querer o sucesso do outro, para que ele não tenha aquilo não tido por nós por absoluta incompetência nossa, que enquanto jogam sua negatividade no ar, os europeus empilham títulos e mais títulos. Em 2026 completaremos 24 anos sem uma taça e, caso a Argentina não consiga vencer, serão 40 anos. O Uruguai, pior ainda, desde 1950, fará 76 anos de jejum.
Enquanto isso, times considerados médios nas décadas de 1970, 1980 e 1990 cresceram e se igualaram. A França, sempre de futebol técnico e bonito, mas sem êxitos até então, foi bicampeã e tem tudo para ir ao tricampeonato no Catar. A Espanha foi campeã em 2010, depois de superar a fama de um futebol considerado inócuo. Além disso, Alemanha e Itália tornaram-se tetracampeãs, a um passo de igualar a nossa frágil liderança tisnada com o maior fiasco da história das copas, o 7 x 1 de Belo Horizonte.
Também nesse período, desde o final da década de 1990, ou de 2002 mais precisamente, quando ganhamos o penta, o futebol tornou-se um dos maiores negócios do planeta, e os clubes europeus, para usar um verbo do gosto de Tite, galgaram vários degraus acima das talentosas escolas sul-americanas, em especial a brasileira, a argentina e a uruguaia. Nos mundiais de Clubes, desde 2000, em 21 disputas, os europeus venceram 16 vezes e nós, sul-americanos, apenas 5. E o pior, desde o último êxito em 2012, ano do título do Corinthians, o abismo técnico aumentou consideravelmente. Em 4 edições, nem da final participamos e os jogos entre sul-americanos e europeus são desiguais, com, no mais das vezes, os nossos atletas jogando atrás, fechados, por uma bola, ou sendo colocados na roda, como o Santos de 2011 frente ao Barcelona, quando tomou 4 x 0.
Quem gosta de futebol e assistiu ao melhor jogo desta Copa do Mundo, as quartas-de-final entre França e Inglaterra, percebeu a enorme distância técnica daquele espetáculo para as partidas disputadas entre os demais países não europeus. O fino da bola é jogado nos gramados da Champions League e nós, sudacas, nos contentamos com o rebotalho, exportando nossos talentos na tenra idade. Nem sequer temos intimidade com os nomes dos jogadores do selecionado, pois vão para a Europa jovens demais, meninos de tudo.
Quando ficamos outros 24 anos sem ganhar títulos, entre 1970 e 1994, o fosso entre europeus e sul-americanos não era tão grande. A profissionalização total dos clubes europeus ainda se operava e, mesmo com muito mais dinheiro, a revolução tecnológica ainda não havia se refletido totalmente nos gramados. Além disso, não se pode deixar de lado o fator político decisivo de João Havelange na presidência da FIFA entre 1974 e 1998, considerado que futebol não é só futebol. É política, geopolítica, negócio, poder e corrupção, por supuesto.
Hoje, os valores recebidos com os direitos de imagem formam orçamentos gigantescos, os profissionais da bola viraram pop stars e houve a espetacularização do esporte. Os jovens jogadores estão em todos os lugares do mercado, na internet, nas redes sociais, nos videogames, nas peças de roupa e, obviamente, na televisão. Os jogos mais importantes são megaeventos, algo parecido com a transformação acontecida na música, com os concertos de rock no início da década de 1980.
Atualmente, uma transmissão de uma partida de grande importância, como os jogos da Copa do Mundo do Catar, são espetáculos nos quais o capitalismo global se mostra com todas as suas facetas, de modo sofisticado, em busca do dinheiro. Torcedores tornaram-se consumidores e eles são muitos e movidos pela paixão. Irracionalmente, em seus desvarios, podem fazer dívidas enormes apenas para ver o clube de seu coração numa final em outro país.
Em artigo recente publicado no importante site esportivo britânico The Athletic, o técnico espanhol Juanma Lillo, 57 anos, considerado o mentor de Pep Guardiola afirmou categoricamente: O futebol acabou. Seja lá o que tenha surgido, não ouso nomeá-lo. O propósito do jogo foi subvertido - agora visam mais os consumidores do que os torcedores, a indústria precisa do dinheiro da TV. Nós nem percebemos a bagunça que fizemos. Globalizamos uma metodologia que alcançou a Copa do Mundo.
A partir da análise da mercantilização do esporte mais popular de todos, da distância progressiva e rapidamente aumentando entre nós e os mais ricos, o sentimento de pertencimento deveria nos fazer olhar para a Argentina, perdoar as faltas passadas, sua decantada soberba, não olhando os seus pecados, mas a fé que anima a nossa escola de futebol, seus craques do passado, Maradona, Kempes, e do presente, Lionel Messi, capazes de encantar o mundo, como os nossos encantaram e ainda voltarão a encantar.
E assim, como hermanos que somos, irmos em frente e nela depositar nossa torcida quase como uma consciência de classe. Junto do Marrocos, ela representará o mundo periférico, mas, especificamente, ao lado do Brasil eliminado, a história do glorioso, mas combalido futebol sul-americano. Faço votos de que passe pela Croácia, avance à finalíssima e conquiste seu tricampeonato.
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(*) Max Telesca é advogado e escritor. Escreveu o romance 2047: A Revolução dos Dementes, lançado em maio de 2022 pela Geração Editorial. É diretor e apresentador do Programa Direito ao Ponto, presidente do Instituto de Popularização do Direito – IPOD, membro da Academia Brasiliense de Letras e diretor do Instituto Histórico e Geográfico do Distrito Federal.