Max Telesca (*) -
“Ser ou não ser, eis a questão: será mais nobre
Em nosso espírito sofrer pedras e setas
Com que a Fortuna, enfurecida, nos alveja,
Ou insurgir-nos contra um mar de provocações
E em luta pôr-lhes fim? Morrer… dormir: não mais”. (William Shakespeare in Hamlet)
O Dilema das Redes foi o título traduzido para o Brasil do documentário The Social Dilemma, do diretor norte-americano Jeff Orlowski, cuja exibição, a partir de setembro de 2020, no auge da pandemia, trouxe para o grande público considerações e revelações sobre a manipulação altamente invasiva das redes sociais sobre a mente do ser humano atual.
O filme não somente demonstra de forma didática o processo de implantação no cérebro de uma dinâmica a trabalhar com as áreas afeitas aos vícios, como também ensaia uma teoria bastante crível sobre a influência das redes sociais, notadamente através de seu funcionamento por meio de inteligência artificial algorítmica, na radicalização de posições políticas, algo chamado de polarização, conferindo uma nova, e, para muitos, errônea acepção para este conceito.
Segundo o raciocínio, as preferências dos usuários verificadas por meio dos cliques e a consequente derrama de conteúdos similares às buscas na nossa timeline, formam uma bolha, uma realidade na qual apenas opiniões e temas do nosso estrito interesse aparecem. Na verdade, isso não é uma teoria, é um fato facilmente verificável. O ensaio teórico se encontra naquilo que pretende ser uma consequência do fato: o reforço autocentrado, circular, das convicções políticas na pessoa e nos grupos formados a partir desta lógica de conteúdos, cuja dinâmica é de retroalimentação por meio de informações e, especialmente, material de desinformação, fake news a formar uma realidade paralela à verdade científica e aos dados concretamente existentes, características do fenômeno da pós-verdade.
Desde tempos imemoriais os iguais se congregam, como os romanos já sabiam; é uma regra da natureza humana, assim como a mentira na política sempre foi utilizada como instrumento de manipulação. Mentiras, portanto, e criação de grupos com o mesmo interesse por meio de suas afinidades, de igual modo, não são temas novos, assim como não é uma novidade o filme que serve de título para este artigo, nem a epígrafe, muito menos ainda.
Algo atual, contudo, é a dinâmica, a velocidade e, especialmente sob o ponto de vista substantivo, a interação conluiada entre o emissor e o receptor da mentira, ambos, em larga medida, sabedores do conteúdo falso da “informação”, mas, em nome da opinião e da vontade de atingir a prevalência de seu discurso, no mais das vezes de ódio, articulam a invenção como se fosse uma verdade posta em autoengano permanente, criando um ambiente de crença coletiva, algo que chamei no meu último romance de Revolução dos Dementes.
Para o momento, uma outra novidade é o dilema vivido por aqueles que não se encontram na bolha da Revolução dos Dementes, e, por tal razão, compreendem como risíveis, mas ao mesmo tempo perigosas, as alucinadas e criminosas manifestações bolsonaristas de ter ocorrido fraude nas eleições e clamor por um golpe de Estado. O dilema acontece quando, no ambiente digital das redes sociais, especialmente em grupos de mensagens e postagens no Instagram e Facebook, entendemos não ser o melhor movimento a alimentação do grupo da bolha, pois são, justamente, o tumulto, a criação de confusão e o esgarçamento sem limites da discussão, os objetivos táticos dos golpistas para chegarem à sua meta estratégica final de interdição do debate racional.
Ao mesmo tempo, sabemos o quão deletério é assistir ao festival insano de atos antidemocráticos baseado em falsas informações a se propagar indefinidamente. Rebater ou ignorar, eis a questão: deitar argumentos sadios sobre quem não tem intenção de debater, mas de arruinar a reputação do interlocutor por meio de alegações enganosas, não seria uma grande perda de tempo e energia? Mas a mentira repetida à profusão, não corre risco de se tornar uma verdade, a teor do ministro da propaganda nazista, Goebbels?
No início da redação deste artigo, confesso, eu ainda não havia chegado a uma conclusão sobre qual o melhor comportamento, seja sob o ponto de vista pessoal, seja como compreender a melhor forma de o debate público se dar, e mesmo como as instituições devem responder aos tumultos da Revolução dos Dementes. Com a observação dos últimos dias, no entanto, firmei convicção a respeito do tema, o que me animou a terminar este texto.
Como dito, o dilema se resume em jogar - ou não - mais combustível na fogueira golpista de lenhas falsas, e debater algo não mais debatível: a vitória do presidente Lula. Com a criação desta polêmica inexistente no mundo real, não jogaríamos mais água no moinho de uma discussão fake a legitimar uma falácia de espantalho? Ir adiante na resposta à tolice, por este viés, nos tornaria tão tolos quanto os irresignados golpistas.
A contemplação da história, no entanto, me traz, de cara, duas constatações. A primeira delas: apesar do ridículo freak show observado nos vídeos de “patriotas” rezando em muros de quartéis, empoleirados em caminhões, comemorando decretações falsas de estados de defesa ou prisão de ministro do STF, não há nada de tolo nos objetivos desta massa significativa de seres manipulados e, ao mesmo tempo, manipuladores. A segunda e mais importante: os tempos são repletos de exemplos nas quais omissões no combate ao ideário de extrema-direita produziram páginas negativas, dentre as quais as mais cruéis do Século XX.
Sobre o ridículo - e dele não há regresso – basta ver o quão histriônico era Mussolini, cujas cenas patéticas influenciaram a postura gestual de Adolf Hitler. Ambos os líderes da extrema-direita italiana e alemã, em comum, além de suas posturas burlescas e discursos caricatos, construíram juntos o maior pesadelo da história contemporânea e, no início, foram subestimados em suas estratégias de crescimento popular. Como consequência, ignorados foram, portanto, na gênese, os perigos de suas interações com a sociedade, quando normalizados seus movimentos políticos e a Revolução dos Dementes da época produziu o nazifascismo.
É bastante comum a citação do erro crasso/clássico cometido pela sociedade alemã, quando sociais-democratas e comunistas, após a eleição parlamentar de novembro de 1932, não chegaram ao acordo para formar um gabinete e abriram a brecha política por onde Adolf Hitler assumiria a chancelaria pela indicação de Hindenburg.
Juntos, comunistas e sociais-democratas obtiveram 37% dos votos, contra 33% do Partido Nazista. Não é objetivo deste escrito atribuir este erro aos comunistas ou aos sociais-democratas, mas a realidade é que não chegaram ao necessário consenso e Hitler aliou-se ao centro e ao quinto colocado das eleições – outro partido de direita - Partido Popular Nacional Alemão, e, apoiado por uma elite empresarial financiadora de atos antidemocráticos, depois implantou uma ditadura. É clichê antigo a citação de Karl Marx em Dezoito Brumário de Louis Bonaparte, mas sempre pertinente, sobre um momento no qual a história se repete como farsa e parece ser uma coincidência significativa hoje termos uma elite empresarial financiando o fechamento de rodovias.
Nada, portanto, de tolices estamos a tratar e, caso não tivéssemos sido tolerantes com Jair Bolsonaro a bradar as maiores barbaridades nos últimos trinta anos, como tecer loas a um torturador, praticar crimes contra a Deputada Maria do Rosário ao dizer que ela não merecia ser estuprada, enaltecer os brios da cavalaria norte-americana por ter dizimado os povos originários da América do Norte, defender o fuzilamento de Fernando Henrique Cardoso ou a tortura abertamente, provavelmente não o teríamos como presidente por quatro longos anos.
Ainda sobre observação histórica, temos uma vantagem temporal bastante palpável em relação os EUA. Eles estão na frente na luta contra movimentos extremistas de inspiração neofascista, a alt right para usar o termo mais adequado e a liderança de Donald Trump, para apontar o nome do boi.
Uma espécie de efeito Orloff se dá, com eles no presente, sendo nós amanhã. Aprender com os erros dos EUA, por exemplo, nos deu experiência suficiente para prever o movimento de Bolsonaro na contestação das urnas eletrônicas e, agora, é necessário que o Partido dos Trabalhadores e as demais forças democratas de esquerda, centro-esquerda, e centro-direita, propugnem pelo debate com uma direita tradicional, democrática, isolando os radicais, algo ainda não dado nos EUA, não obstante a vitória menor do que a imaginada do Partido Republicano nas eleições de meio de mandato.
Um Trump enfraquecido ainda não é uma realidade até agora. Algo a se saber apenas com a visualização dos próximos movimentos, mas um Bolsonaro isolado deve ser um dos principais objetivos a ser alcançado por aqui. Uma meta complexa, levando-se em consideração o imenso eleitorado que quase o reelegeu.
Aprender com o passado europeu e visualizar o presente estadunidense para projetar nosso futuro parece ser uma boa forma de vencer o dilema das redes na Revolução dos Dementes. Responder com altivez e autoridade de quem ganhou uma eleição no debate público; buscar a criminalização pelo Parlamento do discurso de ódio qualificado pelo uso de celulares; processar e punir, como está sendo feito pelo STF, os responsáveis, os integrantes e os financiadores de atos golpistas e, ainda, mas não por fim, repensar de uma vez por todas uma forma de afastar definitivamente a influência das Forças Armadas na política brasileira, parecem, também, ser atos concretos de esforço para superar o golpismo e fortalecer a democracia brasileira que saiu surrada, mas venceu este jogo até agora.
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(*) Max Telesca é advogado e escritor. Autor do romance 2047: A Revolução dos Dementes, lançado em maio de 2022 pela Geração Editorial. Diretor e apresentador do Programa Direito ao Ponto, presidente do Instituto de Popularização do Direito – IPOD, membro da Academia Brasiliense de Letras e diretor do Instituto Histórico e Geográfico do Distrito Federal.