"A vida é de quem se atreve a viver".


Guilherme Cadaval: “Um dos textos mais bonitos desse livro de Paul Preciado é o que conta a história do menino trans, de 17 anos, que tirou a própria vida após anos de assédio sofrido nas escolas em que estudava”.
Um dissidente do sistema sexo-gênero

Guilherme Cadaval (*) –

Foi em 2015, se não me falha a memória, a primeira vez que tive contato com um livro de Preciado. Tratava-se do Manifesto Contrassexual, a cuja leitura nos entregamos por um semestre durante um curso de pós-graduação. O fascínio foi imediato. Nunca havia lido nada daquele tipo, ao menos certamente não no contexto de uma faculdade de filosofia. Não sei, de fato, se se pode classificar tranquilamente o Manifesto como um livro “de filosofia”. Se ele ali participa de alguma maneira, é sob a forma de uma dissidência radical.

O Manifesto foi primeiro lançado no ano 2000, quando sua autora ainda respondia pelo nome de Beatriz. De lá para cá, Preciado viveu e vive uma travessia. Não à toa o livro que hoje trago chama-se Um apartamento em Urano: crônicas da travessia, publicado em 2020 pela Editora Zahar. Seu autor: Paul B. Preciado. Mas é preciso se desfazer do fetiche acumulado nos pontos de partida e de chegada, e atentar para a travessia. Como diz Preciado: “Não sou um homem. Não sou uma mulher. Não sou heterossexual. Não sou homossexual. Tampouco sou bissexual. Sou um dissidente do sistema sexo-gênero. Sou a multiplicidade do cosmos encerrada num regime político e epistemológico binário gritando diante de vocês”. 

O livro reúne uma série de crônicas escritas por ele entre 2010 e 2018, para o jornal francês Libération e outras mídias europeias. E pode-se dizer que as travessias são muitas. Não apenas a passagem do “feminino” ao “masculino” – entre todas as aspas possíveis – mas também a constante mudança de localidade geográfica. Preciado afirma que os textos foram escritos sobretudo “em aeroportos e quartos de hotel”, enquanto se deslocava entre os mais diversos pontos do globo: “A viagem traduz o processo de mutação, como se a deriva exterior tentasse relatar o nomadismo interior. Nunca acordo duas vezes na mesma cama... nem no mesmo corpo”

A “deriva exterior”, assim como o “nomadismo interior”, colocam em evidência uma certa porosidade de toda fronteira. No limiar de um “regime político e epistemológico binário”, não há verdadeiramente identidade, não há mesmo, frequentemente – como Preciado constata algumas vezes nas suas lidas com as autoridades: “Meu corpo trans não existe nos protocolos administrativos que garantem o estatuto da cidadania” – existência, em sentido jurídico. Afinal, como classificar, em que lugar encaixar um corpo que se assume um dissidente do sistema sexo-gênero? Que passaporte conceder a este corpo em constante travessia? E mais: quem poderá concedê-lo, quem jamais poderia arrogar para si uma tal autoridade?

Preciado nos convida, de uma forma infinitamente múltipla da qual será aqui impossível dar conta, a uma experimentação corporal que escape, por um lado, aos limites do “eu ocidental e de sua absurda pretensão de autonomia individual”, por outro, de qualquer naturalização, substancialização ou essencialização deste corpo. O corpo nunca é natural, pelo contrário, é um efeito do regime político-epistemológico sob o qual se movimenta, a partir do qual se identifica desta ou daquela maneira, segundo as normas impostas desde a infância. Experimentar com o corpo significa, pois, abrir um espaço de dissidência, traçar uma linha de fuga que abale as estruturas mesmas desse regime, e o faça aparecer em sua ficcionalidade arbitrária, em sua violência brutal.

Num dos textos mais bonitos de Um apartamento em Urano, Preciado nos conta a história de Alan, menino trans de dezessete anos que foi um dos primeiros a obter o direito de mudar de nome no documento nacional de identidade do Estado espanhol, e que tirou a própria vida após anos de assédio e intimidação sofridos nos centros escolares em que estava matriculado. Mas “como é possível que a escola não tenha sido capaz de proteger Alan da violência? A resposta é simples: a escola é o primeiro espaço de aprendizado da violência de gênero e sexual”. A inexistência a qual é submetido o corpo trans não é apenas teórica, de ordem ontológica: ela é, primeira e principalmente, material. Sua existência inexistente é recebida com insultos, violência, os quais, em última instância, tem como objetivo acarretar a morte deste corpo dissidente. Mas: quem defende a criança queer?

Atravessemos uma fronteira, imaginemos uma “instituição educativa mais atenta à singularidade de cada estudante que à preservação da norma. Uma escola microrrevolucionária, onde seja possível potencializar uma multiplicidade de processos de subjetivação singular. Quero imaginar uma escola onde Alan poderia continuar vivo”.


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(*) Guilherme Cadaval é formado em Filosofia pela UFRJ, onde concluiu mestrado e doutorado. É autor de Escrever a mágoa: um cruzamento entre Nietzsche e Derrida.

Leia mais sobre Paul B. Preciado aqui

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