Beto Seabra (*) –
Quando em outubro de 2016 mais de 100 mil polonesas marcharam pelas ruas de várias cidades em oposição à proibição do aborto num dos países mais católicos da Europa, uma nova onda feminista começava a reinventar o conceito de greve. Dias depois, desta vez na Argentina, mulheres grevistas responderam com uma grande paralisação ao assassinato brutal de Lucía Perez, com o movimento denominado “Ni una menos”.
A onda já havia atravessado o oceano Atlântico, como lembram as autoras do livro Feminismo para os 99%: um manifesto, Cinzia Arruzza, Tithi Bhattacharya e Nancy Fraser, e meses depois chegaria aos Estados Unidos, onde as três são professoras universitárias. No 8 de Março de 2017 ativistas de várias partes do mundo fizeram a Greve Internacional das Mulheres, movimento que contou com Arruzza, Bhattacharya e Fraser na organização e foi uma espécie de marco desse novo feminismo que se espalhava pelo mundo.
O livro foi lançado no 8 de Março de 2018, mas três anos depois está ainda mais atual. Na época, foi lançado ao mesmo tempo em nove países e, na versão brasileira, recebeu um prefácio de Talíria Petrone, eleita deputada federal pelo PSOL do Rio de Janeiro, e apresentação de Joênia Wapichana, única parlamentar indígena, eleita pela Rede Sustentabilidade em Roraima.
Mas o que é o feminismo para os 99%? Para as autoras, não são as “quinquilharias cafonas da despolitização – as flores, os cartões e as mensagens de felicitação”, que inundam os locais de trabalho e as redes sociais todos os anos no dia 8 de março. Feminismo para os 99% não é isso.
Feminismo para o 1%
Também não é o que defendeu no ano passado a diretora de operações do Facebook, Sheryl Sandberg, quando disse que “estaríamos em uma situação muito melhor se metade dos países e das empresas fosse administrada por mulheres e metade de todos os lares fosse administrada por homens”. Para as autoras, isso é apenas um feminismo para o 1%, ou seja, para a minoria que já detém o poder (político e econômico).
Para elas, feminismo para os 99% foi o que aconteceu na Espanha, na primavera de 2018, quando 5 milhões de mulheres pararam o país. Na greve feminista de 24 horas elas exigiam “uma sociedade livre da opressão sexista, da exploração e da violência […] por rebelião e luta contra a aliança entre o patriarcado e o capitalismo que nos quer obedientes, submissas e caladas”.
Ao lado dessas palavras de ordem, as autoras apresentam argumentos e números que mostram a distância tremenda entre a exortação da CEO do Facebook e as mulheres trabalhadoras que foram para as ruas inventar um novo tipo de greve, que junta no mesmo programa reinvindicações identitárias, políticas e econômicas.
Para elas, “Sandberg e sua laia veem o feminismo como serviçal do capitalismo. Querem um mundo onde a tarefa de administrar a exploração no local de trabalho seja compartilhada igualmente por homens e mulheres da classe dominante”. As autoras chamam a isso de “dominação com oportunidades iguais”, ou seja, “aquela que pede que pessoas comuns, em nome do feminismo, sejam gratas por ser uma mulher, não um homem, a desmantelar seu sindicato, a ordenar que um drone mate seu pai ou sua mãe ou a trancar seus filhos em uma jaula na fronteira”.
Arruzza, Bhattacharya e Fraser – esta última autora da expressão “feminismo para os 99%” – fazem em seu manifesto uma crítica certeira ao feminismo liberal de Sandberg e mostram que só a greve feminista pode “pôr fim ao capitalismo: o sistema que cria o chefe, produz as fronteiras nacionais e fabrica os drones que as vigiam”.
E é contra esse capitalismo do 1% da população (é possível ser diferente quando falamos em um sistema dominado não pelos princípios de liberdade e igualdade, mas pelo dinheiro?), que as autoras se insurgem. Para as três, o neoliberalismo, essa forma extremamente predatória e financeirizada do capitalismo que dominou o mundo nos últimos quarenta anos, não permite outra saída: não existe caminho intermediário entre os que nos conduzem a um planeta arrasado pela desigualdade social e a destruição ambiental e o outro, que aponta “para um tipo de mundo que sempre figurou nos sonhos mais elevados: um mundo justo cuja riqueza e os recursos naturais sejam compartilhados por todos e onde a igualdade e a liberdade sejam premissas, não aspirações.” O feminismo para os 99% mostra como trilhar esse caminho.
Reprodução social
No manifesto, elas afirmam que o movimento feminista está reinventando a greve, mostrando o enorme potencial político do poder das mulheres, o poder daquelas cujo trabalho remunerado e não remunerado sustenta o mundo. E ao tratar das atividades das quais o capital se beneficia, mas pelas quais não paga, as autoras entram no tema da “reprodução social”, conceito fundamental para entender o livro.
Na opinião das autoras, o capitalismo não apenas vive da exploração do trabalho assalariado, mas também à custa da natureza, dos bens públicos e do trabalho não remunerado que reproduz os seres humanos e as comunidades. Sempre em busca do lucro ilimitado, o capital degradou o meio ambiente, criou um mundo onde apenas 1% das pessoas possui a mesma riqueza que os outros 99% e sobrevive graças ao trabalho da reprodução social, feito principalmente pelas mulheres, que é aquele trabalho do cuidado: ter e cuidar dos filhos, cuidar das famílias e dos idosos. Esse trabalho custa caro e é fundamental para a existência da nossa sociedade, mas o capital não paga por ele.
Daí porque a greve das mulheres e o novo feminismo são formas novas de combate ao estado atual das coisas. Como dizem as autoras no livro: “pretendemos identificar e confrontar diretamente a verdadeira origem da crise e da miséria, que é o capitalismo”. Para elas, o 1% mais rico sempre foi indiferente aos interesses da sociedade e da maioria e somente um movimento transnacional que tenha como meta os interesses dos 99% da população é que poderia tirar o mundo da atual crise.
Elas acreditam que, em sua busca obstinada por lucros de curto prazo, esse 1% da população falha não apenas ao avaliar a profundidade da crise, mas também a ameaça que ela representa, no longo prazo, à saúde do sistema capitalista em si. Dados da Oxfam mostram que apenas 1% do planeta detém mais da metade da riqueza, às custas da exploração da maioria. E pior: que apenas 62 indivíduos possuem a mesma riqueza que os 3,6 bilhões de indivíduos mais pobres do mundo! Qual a saída, a não ser parar esse motor capitalista que nos arrasta para o abismo?
Marx e Engels
E hoje, o único movimento que parece ter condições de liderar isso é o novo feminismo. Ao enfrentarem o neoliberalismo, o racismo, o machismo e a homofobia, o Feminismo para os 99%, avaliam as autoras, atualiza as premissas de outro Manifesto, o Comunista, escrito por Marx e Engels no século XIX.
Mas o momento, lembram, é outro. 2018, quando o livro foi escrito, não é 1848, quando o Manifesto Comunista foi lançado. “A memória histórica que herdamos inclui a degeneração da revolução bolchevique no Estado stalinista absolutista, a capitulação da social-democracia europeia ao nacionalismo e à guerra e a enorme quantidade de regimes autoritários estabelecidos após as lutas anticoloniais por todo o Sul global”.
Ainda assim, defendem as autoras, além de se afastar de modelos autoritários é preciso fugir de duas armadilhas: a variante “progressista” do neoliberalismo, que propaga uma versão elitista e corporativa de feminismo; e uma variante reacionária, que segue a mesma agenda plutocrática por outros meios, acionando tropas misóginas e racistas a fim de lustrar suas credenciais “populistas”.
A atual crise do capitalismo, acreditam Arruzza, Bhattacharya e Fraser, só poderá ser enfrentada pelo feminismo para os 99%, pois ela é não apenas econômica, mas também ecológica, política e de reprodução social. E finalizam com um alerta: “Relembremos, por exemplo, que aquelas duas revoluções da era moderna, a francesa e a russa, começaram com motins, liderados por mulheres, por causa do pão”.
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Título: Feminismo para 99%: Um manifesto
Autoras: Cinzia Arruzza, Tithi Bhattacharya e Nancy Fraser
Editora: Boitempo (www.boitempoeditorial.com.br)
Onde encontrar: No site da Editora Boitempo ou das livrarias.
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(*) Beto Seabra é jornalista e este artigo foi publicado originalmente no Blog Leitores Sem Fim.
Nota do autor em sua página do Facebook: “Escrevi essa resenha em 2018, sobre o livro lançado no mesmo ano, por ocasião do 8 de Março. Impressionante que o livro, e a própria resenha, estão hoje ainda mais atuais, depois de tudo o que aconteceu no mundo e em particular no Brasil nos últimos dois anos”.