"A vida é de quem se atreve a viver".


Ana Cristina Campos: "A pandemia somada ao governo Bolsonaro mostra que não há pra onde fugir, precisamos  dar um salto civilizatório e Sigmund Freud nos ajuda a refletir sobre os caminhos".
Cultura e salto civilizatório

Ana Cristina Campos (*) –

Desde a sessão do Congresso Nacional de 2016, que aprovou o impedimento da presidente Dilma Rousseff, até a trágica  ascenção  de Jair Bolsonaro à Presidência do Brasil, busco a companhia de Sigmund Freud  nos seus  escritos relativos ao papel da Cultura na harmonização da vida comunal e consequente elevação dos patamares de civilização dos povos. Tais reflexões, pouco evocadas dentre o conjunto de sua obra entre nós, deveriam merecer  mais atenção nesta quadra da história humana, especialmente a brasileira.

No seu texto de 1927, O Futuro de uma ilusão, Freud faz o esboço de sua teoria sobre o  “Mal estar na Civilização”. Nele, está o entendimento de civilização como sendo todo o conhecimento e capacidade que o homem adquiriu com o fim de controlar as forças da natureza e extrair dela a satisfação das necessidades humanas. E, além disso, todos os regulamentos necessários para ajustar as relações dos homens uns com os outros, especialmente a distribuição da riqueza disponível.

Este processo civilizatório exige uma série de renúncias instintuais (relativas aos instintos) que se tornam indispensáveis à existência comunal e são estas renúncias que produzem o “mal estar”, entre as quais Freud destaca as mais estruturais para o arcabouço da cultura ocidental com berço na Europa, a saber: o canibalismo, o incesto e o desejo de matar:

“Quando a civilização formulou o mandamento de que o homem não deve matar o próximo a quem odeia, que se acha em seu caminho ou cuja propriedade cobiça, isso foi claramente efetuado no interesse comunal do homem, que, de outro modo, não seria praticável, pois o assassino atrairia para si a vingança dos parentes do morto e a inveja de outros, que, dentro de si mesmos, se sentem tão inclinados quanto ele a tais atos de violência. Assim, não desfrutaria de sua vingança ou de seu roubo por muito tempo, mas teria toda possibilidade de ele próprio em breve ser morto. Mesmo que se protegesse contra seus inimigos isolados através de uma força ou cautela extraordinárias, estaria fadado a sucumbir a uma combinação de homens mais fracos. Se uma combinação desse tipo não se efetuasse, o homicídio continuaria a ser praticado de modo infindável e o resultado final seria que os homens se exterminariam mutuamente. (...) A insegurança da vida, que constitui um perigo igual para todos, une hoje os homens numa sociedade que proíbe ao indivíduo matar.” (Freud, O Futuro de uma ilusão)

A civilização, portanto, “tem de proteger contra os impulsos hostis dos homens, tudo o que contribui para a conquista da natureza e a produção de riqueza. As criações humanas são facilmente destruídas e a ciência e tecnologia que as construíram, também podem ser utilizadas para sua aniquilação.” (Freud)

O processo de civilização é então vivido como  uma série de sentimentos  indesejáveis, a saber,  como “frustração”, que é o fato de um instinto não poder ser satisfeito; como “proibição”, o regulamento pelo qual essa frustração é estabelecida, e como “privação” a condição produzida pela proibição. Se os seres humanos ainda não conseguiram criar uma vida comunal livre de coerção social e repressão aos instintos, “isso se deve ao fato de nenhuma cultura haver ainda imaginado regulamentos que assim influenciem os homens, desde a infância”.

Mas Freud diz mais:

“Se, porém, uma cultura não foi além do ponto em que a satisfação de uma parte de seus participantes depende da opressão da outra, parte esta talvez maior - e este é o caso em todas as culturas atuais -, é compreensível que as pessoas assim oprimidas desenvolvam uma intensa hostilidade para com uma cultura cuja existência elas tornam possível pelo seu trabalho, mas de cuja riqueza não possuem mais do que uma quota mínima. Em tais condições, não é de esperar uma internalização das proibições culturais entre as pessoas oprimidas. Pelo contrário, elas não estão preparadas para reconhecer essas proibições, têm a intenção de destruir a própria cultura e, se possível, até mesmo aniquilar os postulados em que se baseia.”

Resumidas assim suas premissas e deixando de fora o tema da Religião, que não faz parte do foco deste texto mas que Freud considera  como um obstáculo importante ao desenvolvimento cultural, a questão  decisiva  que se coloca então é saber se, e até que ponto, é possível diminuir o ônus dos sacrifícios instintuais impostos aos humanos, reconciliá-los com aqueles que necessariamente devem permanecer e fornecer-lhes uma compensação.

Entre as compensações construídas pelos humanos diante de sua condição de insegurança, fragilidade e desamparo, além da coerção social e renúncia aos instintos, estão algumas vinculadas aos processos de invenção e contemplação:

- os deslocamentos de libido, que consistem em reorientar os objetivos instintivos de maneira que iludam a frustração do mundo externo. Obtém-se o máximo quando se consegue intensificar suficientemente a produção de prazer a partir das fontes do trabalho psíquico e intelectual como, por exemplo, a alegria do artista em criar, em dar corpo às suas fantasias, ou a do cientista em solucionar problemas ou descobrir verdades.

- a fruição das obras de arte, cujo poder de satisfação, por intermédio do artista, é tornada acessível inclusive àqueles que não são criadores.

- fruição da beleza , que dispõe de uma qualidade peculiar de sentimento, tenuemente intoxicante. (O Mal estar na Civilização: 29/30/32).

Tais observações  nos conduzem, entre outros caminhos, a  pensar na utilidade da arte e sua função “ terapêutica” no sentido de nos poder fazer suportar a complexidade da vida, como criadores e/ou espectadores, quer seja louvando-a , desafiando-a ou questionando-a  e, sendo assim, nos impele a duvidar de sua superfluidade. Ao não identificá-la como supérflua, fica a Arte instaurada no  patamar das necessidades humanas.

No Brasil, o campo artístico cultural sempre desempenhou papel relevante nos projetos de poder ao longo de nossa história. Ora no auxílio à construção da ideia do Brasil como Nação, com Pedro II; ora como difusor do projeto de um  Brasil trabalhador, na Era Vargas; ora como sinalizador de um processo de distensão política, ao final do regime militar, em contraponto à censura que, sob o pretexto de estabelecer um freio à expansão do comunismo no Ocidente, constituiu-se no braço ativo do ideário da  Segurança Nacional; ora como um recurso econômico capaz de impulsionar a economia, a partir da criação do Ministério da Cultura (MinC) e do lema “Cultura é um bom negócio”; ora reconhecendo a centralidade do campo para a conquista da soberania nacional e popular, a diversidade de manifestações artístico culturais, fortalecendo as expressões regionais e profissionalizando o setor, nos governos Lula e Dilma; e finalmente, no Governo Bolsonaro, o movimento de destruição de todo este processo de construção institucional, em nome do combate ao que apelidaram fantasiosamente de  “marxismo cultural”, da moralização dos costumes, da introdução de um viés religioso como instrumento de contenção da criatividade e da liberdade de expressão e pensamento, corrompendo o ideal de  Estado Laico e a  própria  ideia de Democracia, e da radicalização da política neoliberal, fundada sobre  os valores da competição, individualismo e meritocracia, imposta à periferia do sistema como forma de pagar a conta da crise que as próprias economias neoliberais centrais, criaram, possibilitando assim sua sobrevivência.

Com o argumento da contenção de gastos e de que a Cultura não é um setor  indispensável da vida cotidiana, mesmo  tendo um dos mais baixos orçamentos da Esplanada dos Ministérios, não temos mais o MinC. Todos os governos de perfil autoritário, com exceção de Getúlio Vargas que fez um uso adequado do campo cultural/educativo, têm como primeira iniciativa abolir a pasta da Cultura.

Este desejo voraz de  destruição  está diretamente ligado ao  alto Poder e capilaridade que a Cultura possui já que é o resultado dos encontros, trocas  e escolhas estéticas e éticas entre os diversos grupos que compõem a Nação no seu cotidiano ao longo da História. Mas talvez este  investimento precário no campo artístico-cultural e os movimentos para destruir os que existem seja,  ao mesmo tempo, uma forma dos “ excluídos da criatividade” penalizarem os “criativos”, vistos como aqueles que têm o privilégio de desenvolver seus potenciais de invenção. Uma espécie de vingança contra artistas, intelectuais e semelhantes, por parte daqueles que se acham privados do gozo estético e criativo, por um sistema mecânico e alienante de trabalho e um sistema educacional que insiste em negligenciar o papel estrutural das Artes, Ciência e Pensamento para o desenvolvimento humano.

Há uma imagem produzida durante a campanha presidencial de 2018 que mostra o Presidente Messias com uma criança ao colo simulando porte de arma. Ela sintetiza o macabro presente que testemunhamos, ao ferir dois princípios básicos para a concretização do processo civilizatório, o  “não matarás” que rechaça todo incentivo ao homicídio; e por não ter havido punição a este  incentivo, a imagem fere o princípio basilar sem o qual nenhuma civilização é possível, o Direito.

Ao encerrar suas reflexões sobre o “mal estar na civilização”, Freud adverte:

“A questão fatídica para a espécie humana parece-me ser saber se, e até que ponto, seu desenvolvimento cultural conseguirá dominar a perturbação de sua vida comunal causada pelo instinto humano de agressão e autodestruição.” (Freud, 199:,111).

Este é o desafio lançado aos governantes, políticos, economistas, artistas, educadores, sociedade em geral, elites em particular e diz respeito diretamente, ao Ministério da Cultura.

Resta saber quem vencerá, civilização ou barbárie.
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(*) Ana Cristina Campos é produtora cultural e pós-graduada em História pela UnB.

Fonte: Sigmund Freud – O Futuro de uma ilusão. O Mal estar na Civilização e outros trabalhos. Ed . Imago. Vol XXI

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