No jornal Le Monde Diplomatique deste mês topei com um texto muito pertinente dos franceses Stéphane Beaud (sociólogo) e Gérard Noiriel (historiador) sobre os "Impasses das políticas identitárias". Traduzi as partes que me pareceram mais importantes. Embora eles se debrucem sobre a realidade francesa, muitos aspectos do que eles abordam valem, me parece, para o Brasil também. Especialmente o que chamam de "americanização" das questões sociais.
A seguir, o resumo do texto traduzido:
"A questão racial ressurgiu brutalmente no centro do noticiário, em 25 de maio de 2020, quando as imagens do assassinato de George Floyd, filmado por uma passante com um smartphone, foram difundidas sem cessar nas redes sociais e nos canais de informação. O homicídio daquele afro-americano por um policial branco de Mineápolis desencadeou uma imensa onda de emoção e de protestos no mundo inteiro. Uma multidão de atores sociais – militantes antirracistas, jornalistas, políticos, intelectuais, especialistas, artistas, escritores etc. – intervieram nos Estados Unidos e outros lugares para dar sua opinião sobre aquele crime e seu significado político.
Na França, há uns quinze anos, a denúncia pública dos crimes racistas ou de fatos que alimentam suspeitas de discriminação racial assume regularmente na mídia a forma de “questões raciais” que se autoalimentam quase sem parar. Após a petição intitulada Manifesto por uma República francesa antirracista e descolonizada, assinada por 57 intelectuais e divulgada pelo site Mediapart em 3 de julho de 2020, o semanário Marianne reagiu em 26 de julho de 2020 publicando um Apelo contra a racialização da questão social, assinado por mais de oitenta personalidades e umas vinte organizações.
A comparação das duas petições mostra como funciona aquilo que Pierre Bourdieu chamava de jogo das “cegueiras cruzadas”. A crítica justificada das violências racistas de alguns policiais e do “racismo de Estado” nas colônias francesas até o final da guerra da Argélia levou os peticionários de Mediapart a defender um projeto político centrado nas questões raciais e descoloniais, ocultando os fatores sociais. Inversamente, os autores do apelo publicado em Marianne relembram o papel central que a classe social desempenha nas desigualdades que afetam a França de hoje, mas seu próprio combate identitário, resumido pelo slogan “Nossa República laica e social, uma chance para todos!”, incita-os a afirmar que “nosso país jamais conheceu a segregação”, afirmação que nenhum historiador, nenhum sociólogo sério pode chancelar. Esses enfrentamentos identitários, em que cada campo mobiliza sua pequena tropa de intelectuais, colocam os pesquisadores que defendem a autonomia de seu trabalho numa posição impossível.
Essa racialização do discurso público foi amplamente beneficiada pela revolução digital que eclodiu durante os anos 2000. O desenvolvimento extraordinário da indústria midiática deu o remate final àquilo que Jürgen Habermas tinha chamado de “colonização do mundo vivido”. Essas imensas máquinas de fabricar informação são alimentadas vinte e quatro horas por dia graças a um combustível que explode as jazidas emocionais enterradas em cada um de nós e que nos fazem reagir instantaneamente e instintivamente diante das injustiças, das humilhações, das agressões. A “sensacionalização” do noticiário político, nascida com a imprensa de massa no final do século 19, atingiu hoje seu paroxismo, substituindo cada vez mais a análise arrazoada dos problemas sociais pela denúncia dos culpados e pela reabilitação das vítimas.
As empresas estadunidenses globalizadas que possuem as redes sociais aceleraram brutalmente aquele processo, pois os bilhões de indivíduos alcançados por essas redes não são mais apenas os receptores passivos dos discursos fabricados pela mídia, mas atores que participam da difusão desses discursos e mesmo da sua elaboração.
As redes sociais, assim, fizeram nascer um espaço público intermediário que ultrapassa o quadro dos Estados nacionais, contribuindo fortemente para a americanização das polêmicas públicas, como ilustra a rapidez com que são importadas expressões como color-blind (“cego à cor [da pele]”), Black Lives Matter (“Vidas negras importam”), cancel culture (“cultura do cancelamento”) etc.
Sendo o racismo hoje um dos temas políticos mais aptos a mobilizar as emoções dos cidadãos, compreende-se por que sua denúncia ocupa um lugar cada vez mais central na mídia. Constatar esse fato não significa – será preciso lembrar? – negar ou minimizar a realidade do problema, e isso não impede em nada constatar ao mesmo tempo que as expressões de formas descomplexadas de racismo se multiplicam, elas também, na mídia.
As pessoas oriundas da imigração pós-colonial (países do Norte da África e da África subsaariana) – que pertencem em sua maioria às classes populares – foram as primeiras vítimas dos efeitos da crise econômica a partir dos anos 1980. Elas sofreram múltiplas formas de segregação, seja no acesso à moradia, ao emprego ou em suas relações com os agentes do Estado (controles de identidade pela polícia com base na fisionomia). Além disso, essas gerações sociais tiveram de enfrentar politicamente o desmoronamento das esperanças coletivas conduzidas no século 20 pelo movimento operário e comunista.
A linguagem radicalizante que apresenta a cor da pele como a variável que determina o conjunto das práticas econômicas, sociais e culturais de nossos concidadãos esmaga a complexidade e a sutileza das relações sociais e das relações de poder. Todas as pesquisas sociológicas, estatísticas ou etnográficas mostram, porém, que as variáveis sociais e étnicas agem sempre em concerto e com intensidades diferentes. Embora toda a arte das ciências sociais consista em dissecar finamente, segundo os contextos (geográfico, histórico, interacional), o jogo das variáveis em ação, ocorre que não se pode compreender nada do mundo em que vivemos se esquecermos que a classe social de pertencimento (medida pelo volume de capital econômico e de capital cultural) permanece, a despeito do que se possa dizer, como o fator determinante em torno do qual se apoiam as outras dimensões da identidade das pessoas.
Ao ocultar as relações de poder que estruturam nossas sociedades, esses discursos identitários contribuem para acentuar as divisões no interior das classes populares – objetivo que desde os anos 1980 tem sido buscado pelas forças conservadoras para romper a hegemonia da esquerda. Situar o combate político no plano racial apresentando todos os “brancos” como privilegiados é incitá-los a se defender com o mesmo gênero de argumentos. Dado que na França os “brancos” são maioria, os “não brancos” estão condenados a permanecer eternamente minoritários.
Acreditar que atos de contrição como o de Jeff Bezos (em seu tweet da Amazon em reação ao assassinato de George Floyd: “O tratamento injusto e brutal dos negros em nosso país deve cessar”, 31 de maio de 2020) poderiam conduzir os indivíduos definidos como “brancos” a renunciar a seus “privilégios” é reduzir a política a lições de moral, o que é habitual nos Estados Unidos e tende a se tornar habitual na França.
Uma vez que a experiência estadunidense é mobilizada incessantemente hoje em dia quando se trata de evocar a questão racial, é útil recordar a análise apresentada recentemente pelo filósofo Michael Walzer para explicar o fracasso relativo do movimento antirracista negro estadunidense, fracasso que explica por sua vez por que o racismo permanece um problema central nos Estados Unidos.
No balanço que [Walzer] faz em retrospectiva, ele levanta a questão essencial das alianças políticas que devem ser feitas no campo das forças progressistas:
“Nós pensávamos que o nacionalismo negro, mesmo que fosse compreensível, era um erro político: para se fazerem ouvir, as minorias devem se engajar em política de coalizão, os judeus aprenderam isso há muito tempo. Você não pode ficar isolado quando representa 10 ou 2% da população. Você precisa de aliados e deve elaborar políticas que favoreçam as alianças. Foi o que o nacionalismo negro recusou e foi isso que o conduziu, acredito, a um impasse. (...) As ‘políticas de identidade’ tomaram a dianteira na política dos Estados Unidos e levaram a movimentos separados: os negros, os hispânicos, as mulheres, os gays. Não houve solidariedade entre essas diferentes formas de luta pelo reconhecimento. Black Lives Matter, por exemplo, é uma expressão fundamental da ira legítima dos negros, ligada principalmente ao comportamento da polícia. Mas os hispânicos não recebem tratamento melhor. Não existe, que eu saiba, um Hispanic Lives Matter e nenhum esforço coordenado para a criação de uma coalizão de grupos étnicos para uma reforma da polícia”.
Dada a americanização da nossa vida pública, podemos recear infelizmente que a constatação de Walzer também esteja a ponto de se verificar na França. Sem dúvida, numerosas vozes se fazem ouvir, reivindicando regularmente a “convergência das lutas”. No entanto, aquelas e aqueles que militam nesse sentido devem agir a partir de agora no âmago de um novo sistema comunicacional que se impôs com a revolução digital dos anos 2000. Antes, para promover uma causa no espaço público, bastava que ela fosse definida e defendida coletivamente por organizações que reuniam um grande número de militantes. Hoje, basta que alguns ativistas – que se erigem em porta-voz desta ou daquela reivindicação sem terem recebido o mandato de ninguém – chamem a atenção da mídia. Daí a multiplicação das ações espetaculares, como as dos militantes que interditam peças de teatro em nome do combate antirracista. A complacência dos jornalistas diante desse tipo de ação alimenta polêmicas que dividem constantemente as forças progressistas. Enquanto a liberdade de expressão e o antirracismo sempre estiveram associados até agora pela esquerda, esses happenings ultraminoritários acabam por opô-las umas às outras. O que abre uma verdadeira avenida para os conservadores."