Guilherme Cadaval –
Faz tempo que não jogo bola. Aliás, das últimas vezes deve ter sido mais ou menos na época que comecei com essa história de fazer filosofia, de filosofar. Lembro até hoje, inclusive, de uma vez que a bola corria ligeira para a lateral, e eu atrás dela, ombro a ombro com o adversário. No cruzo da inexperiência e dos meus cinquenta e quatro quilos, bastou que o camarada me desse uma escorada de leve pra me colocar fora da disputa. Ainda tive o impulso de gritar a falta, mas no fundo sabia que não tinha mesmo jeito: o que me faltava era a perna, e o argumento.
Foi essa a primeira memória que me veio lendo o mais novo livro dos mestres Simas, Rufino e Haddock-Lobo, Arruaças: uma filosofia popular brasileira, lançado agora a pouco pela editora Bazar do Tempo. O livro é, como o próprio Simas reconheceu no lançamento (na virtualidade do mundo cibernético, e com a presença de mais um mestre, Moyseis Marques), uma grande sacanagem, festa na birosca, sem hora pra acabar, e onde tá todo mundo convidado. Peço licença, então, aos mestres, pra participar da festança, riscando minha sacanagem nessa roda: a filosofia popular brasileira é praticada como filosofiar.
Explico-me. Trata-se, por um lado, do fio, o texto urdido a seis mãos, tramando artimanhas não convencionais para fazer o Brasil – a quem pedimos a São Longuinho e Calunguinha que nos ajude a encontrar – ser rasurado pela brasilidade. Os fios dessa trama são também como o laço do boiadeiro, que vai catar cada “boi-palavra” pois sabe que “perder um boi ou uma palavra é perder uma preciosidade”. Mas esse fio também tece seu Zé Pelintra, que na ginga da rua “dribla e rasura a cidade-simulacro, alegoria tomada pelo devaneio civilizatório e viciada em cartões-postais decadentes”.
Estes são só alguns dos personagens que vadeiam pelas páginas riscadas de Arruaças, cruzando, encruzando, driblando a carga imantada do Brasil oficial, deslocando o “corpo/bola para o espaço vazio, onde o oponente não está e não pode chegar” como o índio fulni-ô Mané Garrincha. Por isso que é preciso saber cruzar essas páginas com a sabedoria de mestre Canjiquinha: “As ideias estão no chão. Eu tropeço, encontro soluções”. É na errância da vadiação que o livro se abre, e a sacanagem acontece.
Mas deixei pela metade a explicação dessa conversa de filosofiar. Não se trata apenas do fio, da trama, do texto. Se a filosofia popular brasileira é praticada como filosofiar, seus mestres não podem ser outros que os filosofiadores. Nessa birosca abarrotada em que sempre cabe mais um, onde os corpos se misturam e as sabedorias se embebedam e derramam de copo em copo, todo o mundo pode escapar gingando da dívida sem fim que o “paiol colonial” segue cobrando, e pendurar a sua fatura.
Talvez esse papo de fiado tenha brotado na mistura com uma lembrança que herdei de meu pai, da época em que ele comandou um boteco na Usina com meu tio e meu padrinho, o Bar das Pombas, que nunca cheguei a frequentar, por culpa de não ter ainda nascido. Imagino os mestres Simas, Rufino e Haddock-Lobo servindo a gelada de mesa em mesa, botando a peça de pernil na vitrine e o pote de ovo colorido em cima do balcão, proseando com os frequentadores, nesse espaço terreirizado onde “transbordam os limites de nossas experiências enquanto sujeitos” e onde o “sou” dá lugar ao “somos”.
Vai ver a responsabilidade de passar adiante a ancestralidade é a grandeza do filosofiador, que, como Maria Mulambo ou Estamira Gomes de Souza, “rainha da noite, trabalhando nas ruas quando o galo canta”, tem a sua realeza assentada na realidade miúda do que o mundo “verdadeiro” insiste em descartar.