"A vida é de quem se atreve a viver".


Lúcio Costa, no documento “Brasília Revisitada” (1987), já propunha o fim do uso comercial exclusivo na zona central de Brasília. Em 2016, a Portaria nº 166, do Iphan, retirou os entraves legais. Uma nova urbanidade deve se instalar ampliando a oferta de habitação até 60m²
Uso habitacional do SCS de Brasília é uma necessidade

Luiz Philippe Torelly (*) –

Não há compêndio de arquitetura e urbanismo, em qualquer língua, em que não figurem fotos e textos sobre Brasília. Sua construção nos anos 50 atraiu os olhares de todo o mundo para o que estava acontecendo no Planalto Central do Brasil, até então uma vasta extensão desocupada e de escassa relevância econômica.

Prevista desde a primeira Constituição republicana de 1891, Brasília reunia anseios seculares de integração do território nacional. Sua localização no encontro das três grandes bacias hidrográficas do país, Amazônica, Prata e São Francisco, é um dos aspectos da vasta simbologia que a cerca.

O autor da proposta que seria vitoriosa no concurso para a construção da nova capital, o arquiteto Lúcio Costa, realizou um projeto urbanístico que até hoje é objeto de debates e polêmicas, mas uma dúvida nunca restou: era o melhor plano entre os 26 concorrentes. Os membros do júri da época, e os especialistas da atualidade, são unânimes em apontar esse fato relevante e inquestionável. Com uma morfologia logo identificada com o formato de um avião, a cidade é resultado do cruzamento de dois eixos, como na ancestral tradição greco-romana: cardus e decumanus. Lúcio Costa promoveu uma síntese das ideias urbanísticas da antiguidade clássica, até os princípios urbanísticos modernistas.

Uma das ideias-força do plano é a das escalas, devidamente associadas e decorrentes do uso do solo predominante em cada uma delas: monumental, residencial, gregária e bucólica.

Cada uma teria funções e atividades específicas e de maneira geral, pode se dizer que decorridos 60 anos da fundação da cidade, elas obedecem ao proposto originalmente.

Escala monumental – A escala monumental, localizada ao longo do eixo de mesmo nome, concentra as atividades político-administrativas e confere à nossa urbs os principais símbolos arquitetônicos que a definem. A Praça dos Três Poderes e os palácios do Planalto e do Supremo Tribunal Federal, o Congresso Nacional, os ministérios das Relações Exteriores (Itamarati) e da Justiça e a denominada Esplanada, composta pelos demais ministérios todos iguais entre si. Em seu terço final localizam-se equipamentos culturais, como a Catedral, o Museu Nacional, a Biblioteca e o Teatro Nacional.

Todos os edifícios da escala monumental, compreendidos entre a Rodoviária (de Lúcio Costa) e a Praça dos Três Poderes, são de autoria de Oscar Niemeyer, responsável assim pelos símbolos mais marcantes da arquitetura brasiliense.

Escala residencial – A escala residencial alinhada ao longo do eixo rodoviário é formada por superquadras e unidades de vizinhança, onde se abrigam predominantemente residências e algumas atividades complementares, como pequeno comércio, escolas, lazer e templos. É um modelo que resistiu bem ao tempo pela força de sua concepção e qualidade de desenho. Generosas áreas verdes qualificam os espaços, embelezam e amenizam os efeitos do clima.

Escala bucólica – A escala bucólica composta por amplos gramados e vegetação nativa, tem por principal objetivo assegurar o formato do plano piloto e preservar as amplas vistas que caracterizam a cidade. São locais de lazer contemplativo e recreação. Ter o horizonte como elemento paisagístico e de deleite, é uma das boas características presentes no plano piloto e muito rara nas maiores aglomerações urbanas.

Escala gregária – A escala gregária foi criada como sendo a do encontro e lazer, bem como das atividades características das áreas urbanas centrais. Comércio variado, bancos, magazines, edifícios de uso público e comerciais, escritórios e prestações de serviços. Seu elemento de articulação, a Rodoviária, ponto de cruzamento entres os eixos monumental e rodoviário, ao mesmo tempo em que se constituí em uma articulação de interesse local e metropolitano, permite fácil acesso de pedestres e veículos aos denominados setores centrais: comercial, hospitalar, diversões, bancário e de autarquias.

Infelizmente, por vários fatores a escala gregária não funcionou como havia proposto Lucio Costa. Enquanto as demais cumprem com bom desempenho suas atividades, o mesmo não acontece com a nossa área central.

Antes de mais nada é importante destacar que áreas centrais em muitas grandes cidades do planeta, apresentam problemas de diversas naturezas. Congestionamento, problemas ambientais, trânsito, transportes, violência, decadência e abandono.

A área central de Brasília não é diferente. Explicito algumas questões com o objetivo de ampliar o debate na busca por boas soluções que ensejem novos usos e sua revitalização. Em primeiro lugar, temos um vício original: as áreas centrais foram ocupadas exclusivamente com o uso institucional e comercial. Além disso, sua implantação foi sendo feita de forma gradativa ao longo dos anos sem que o seu projeto original de monofuncionalidade fosse enfrentado. Ainda hoje subsistem vários lotes vazios, que poderiam ser remanejados ou utilizados com destinação diferente da original.

Ao longo dos anos ocorreram mudanças nas dinâmicas urbanas. No caso de Brasília um fator que teve forte impacto foi o surgimento dos shopping centers. Na área central da cidade eles são cerca de cinco, todos de grande porte. Concentram muitas lojas e serviços e oferecem estacionamento, segurança e ar-condicionado. Novos edifícios mais modernos e com confortos inexistentes nos mais antigos foram sendo construídos. Isso tudo gerou uma nova centralidade superconcentrada. O resultado foi o esvaziamento gradual, espaço urbano degradado, abandono. Não só as áreas centrais foram atingidas, as avenidas W3 Norte e Sul, apresentam processo de degradação semelhante e com inúmeros imóveis desocupados.

A solução tem unanimidade: acontecimento raro em se tratando de Brasília. Incentivar o uso habitacional nos edifícios vazios e requalificar paisagísticamente a região. Depois de muitos anos de debates e recomendações para incorporar o uso habitacional no SCS, finalmente o GDF aquiesceu.

No documento Brasília Revisitada (1987) Lúcio Costa já propunha o fim do uso comercial exclusivo na zona central de Brasília. Em 2016, a Portaria nº 166, do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), retirou os entraves legais que impediam a adoção de uma nova dinâmica urbana para essas áreas. A expectativa é que uma nova urbanidade se instaure, ampliando a oferta de habitação até 60m², sem que a população de rua que hoje ali está instalada seja marginalizada.

O uso habitacional no Setor Comercial Sul e sua movimentação decorrente não só qualificam o espaço, como dinamizam a economia e geram novos empregos.
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(*) Luiz Philippe Torelly é arquiteto e urbanista.

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