Lusmarina Campos Garcia (*) –
Uma menina de dez anos engravidou do tio que a estuprava desde os seis anos de idade. A justiça do Espírito Santo autorizou o aborto. Interrupção de gravidez derivada de estupro é um dos casos admitidos pela lei brasileira.
A autorização judicial foi necessária pelo fato de a menina ser menor e, portanto, tratar-se de estupro de vulnerável. Não há dúvida de que este abortamento precisava ser feito, com a máxima urgência. Além da gravidez resultar de crime, ainda representava um risco para a vida da menina.
A violência sexual cometida contra meninas no âmbito da casa é mais frequente do que as famílias brasileiras querem admitir. É uma violência abrangente, posto que praticada contra mulheres de todas as idades. A gravidez de uma menina de dez anos que é estuprada pelo tio desde os seis é algo chocante, repugnante, é uma monstruosidade. No entanto, pergunto: e se a menina tivesse doze anos, seria ainda muito chocante? E se tivesse quatorze ou dezesseis?
O mecanismo de justificação do estupro é posto em moção quando se trata de estupro de mulheres adolescentes, jovens e adultas. Mas o princípio gerador da violência contra mulheres de outras idades é o mesmo que possibilita a violência contra uma menina de dez ou mesmo de seis anos. A violência sexual contra as mulheres não tem idade. E ela só existe porque há correntes de pensamento e instituições que a justificam, e mais do que isso, que a produzem.
O pensamento ocidental cristão é uma das fontes produtoras de violência contra as mulheres. Na medida em que utiliza uma hermenêutica bíblica a-crítica e constrói teologias de subalternização das mulheres, abre uma fonte abundante de produção de violência.
A luta por manter o aborto criminalizado é só um dos jorros desta fonte de violências abertas. Seguindo a tradição patriarcal-misógina do pensamento filosófico ocidental, os pais da Igreja identificaram a mulher como “a porta da entrada do diabo no mundo” (Tertuliano), “a representante da sexualidade e da carnalidade, o que a coloca num estado inferior e negativo” (Orígenes), “o animal mais daninho” (São Cristóvão), “uma besta insegura e instável” (Santo Agostinho). A sua “redenção” foi operada pela maternidade. Esta é a base da teologia patriarcal que até hoje mantém as suas garras sobre a vida e os corpos das mulheres cerceando-lhes a autonomia e a liberdade de ser quem são e de viverem a partir das suas próprias escolhas.
Com as mudanças sociais ocorridas a partir dos processos revolucionários dos séculos XVIII e XIX as mulheres tornaram-se sujeito de direito assim como força de trabalho relevante nas diferentes sociedades. Educaram-se e passaram a incidir sobre a vida social e profissional nos mais diversos âmbitos. Tornaram-se pessoas e cidadãs autônomas. No entanto, esta autonomia é rejeitada e combatida pela mentalidade patriarcal que ainda operacionaliza as relações sociais, profissionais, religiosas e familiares.
A autonomia das mulheres é percebida como ameaça para esta mentalidade que quer assegurar-lhes o lugar de reprodutoras, geradoras de filhos para os homens e de trabalhadores e consumidores para o mercado.
A menina grávida de dez anos, que é estuprada desde os seis, deve nos envergonhar como nação, e não pode permanecer como um caso isolado, porque não o é. Quantas meninas e quantos meninos de seis anos são estuprados nos lares brasileiros, cotidianamente, e nós não ficamos sabendo? Este caso precisa nos confrontar com as razões sociais, culturais e religiosas que permitem que ele exista e que continue se repetindo. Precisa igualmente gerar a responsabilização não só do homem que cometeu o crime, mas de todas as instituições, instâncias governamentais e grupos sociais que agem para que as fontes de violência contra as mulheres continuem abertas.
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(*) Lusmarina Campos Garcia – Teóloga, biblista e pastora luterana da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (IECLB).
Artigo publicado originalmente no site Cartas Proféticas.