Guilherme Cadaval (*) –
Quem já se aventurou pelas páginas da Genealogia da Moral de Nietzsche vai, sem dúvida, sentir um calafrio na espinha ao ver nomeado esse afeto que nunca ousa dizer seu nome. O ressentimento é um dos temas centrais da Genealogia.
Cultivado ao longo da mais duradoura e radical experiência do humano consigo mesmo, a domesticação que o encerra definitivamente no âmbito da sociedade e da paz, ele implica uma inversão de valores, através da qual os fracos subjugam os fortes. Pois aqueles denunciam na força destes a violência e a injustiça, uma vez que seu exercício seria questão de escolha, enquanto reinterpretam a sua própria fraqueza como renúncia e superioridade moral, numa vivência imaginária da vingança.
O ressentimento é próprio daqueles sujeitos que não se percebem ou não se sentem como agentes, para quem a ação parece impossível, e que, assim, resignam-se a reivindicar aquilo mesmo que não podem levar a cabo. Trata-se, evidentemente, de um tipo de afeto que pode lançar luz sobre diversas dinâmicas da contemporaneidade.
Por esse motivo, é certamente muito bem-vinda a reedição, pela Editora Boitempo, do belo livro Ressentimento, da jornalista e psicanalista Maria Rita Kehl (na foto, abaixo), lançado pela primeira vez nos idos de 2004. Kehl coloca o ressentimento nietzscheano em movimento, estabelecendo diálogos com a psicanálise freudiana, com a filosofia imanente de Baruch Spinoza, com a literatura de Shakespeare, Dostoiévski, Ramos e Márai, oferecendo-nos, por fim, uma leitura da esfera política.
Se Freud nunca trabalhou diretamente com o termo ressentimento (recusara-se o “grande prazer proporcionado pela leitura de Nietzsche”, talvez por angústia da influência: teriam, inegavelmente, muito em comum), ofereceu, por outro lado, uma rica constelação afetiva sobre cujo solo a interpretação do ressentimento pode vingar. O narcisista, o neurótico obsessivo, o histérico, o melancólico, embora não sejam exatamente os ressentidos por excelência, comungam de algumas das paixões que permeiam a existência do ressentido.
Mas é na passagem pela literatura, me parece, que o recalque é levantado, e o gozo é de uma vez liberado: entramos então em contato com o que Kehl chama a “estética do ressentimento”. Desde o disforme e monstruoso “Ricardo III”, peça que tem como seu “protagonista não nomeado” o ressentimento, até o general Henrik de As brasas, e a sua “vingança adiada”, no brilhante romance do húngaro Sándor Márai, passando pelo perturbado Raskolnikóv de Crime e Castigo, e pelo agreste Paulo Honório de São Bernardo [de Graciliano Ramos].
O que sucede no mundo e deixa marcas no corpo da literatura, é a passagem de uma época de tragédias históricas, como é Ricardo III – onde o caráter trágico dos acontecimentos envolvia indistintamente a vida pública e a vida privada e o destino do herói importava tanto quanto o da pátria – à época das tragédias individuais, como em As brasas, onde o drama do indivíduo comum, burguês, é alçado ao primeiro plano. A subjetividade moderna oferece terra fértil para o ressentimento: “os pressupostos do individualismo são determinantes para a construção do personagem ressentido”.
De fato, o ressentimento talvez seja o afeto característico da modernidade, a epítome do individualismo que ela dá à luz. Mas de que maneira pensa-lo como um afeto político? Contrariando, aparentemente, nosso título, Kehl diz o seguinte: “o ressentimento é o avesso da política”.
Ora, para nós, brasileiros e brasileiras deste tenebroso tempo presente, quem sabe não seja muito difícil entender por que esta jovem democracia chamada Brasil, emprenhada de sonhos e promessas de igualdade da Nova República, descambou num fracasso retumbante.
A igualdade simbolicamente antecipada não deu as caras na prática. Esta falta sendo experimentada como privação, produz, por sua vez, o ressentimento na política, o qual, cruzado com o paternalismo característico que marca nossa história, gera uma mistura tão perversa quanto explosiva.
Mas o ressentimento é o avesso da política, justamente na medida em que ele não se realiza naquilo que é a essência do político, a ação, senão que na reação: já dizia Nietzsche que o ressentido precisa antes de um outro, um “não-eu” ao qual diz não, para apenas depois poder formar uma imagem de si mesmo, para dizer sim a si mesmo – sua ação é no fundo reação. E não nos enganemos de supor que ele viceja apenas do lado da “direita”. Um certo purismo da esquerda, ao mostrar-se incapaz de analisar a sua responsabilidade pelas derrotas sofridas, também faz surgir este que não ousa dizer seu nome.
Aí está, contudo, uma indicação do caminho que talvez leve para além do ressentimento. Se até a ação política pode, por vezes, ver-se presa da reação, adotemos um certo fatalismo russo, deitando sobre o gelo o bem como o mal, os mais altos ideais e as mais amargas derrotas. Abraçar o revés e a sua responsabilidade, sem lançá-la na direção daquele que exerceu sua força e nos subjugou. Resta saber se existe gelo num país tropical.
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(*) Guilherme Cadaval é formado em Filosofia pela UFRJ, onde concluiu mestrado e doutorado. É autor de “Escrever a mágoa: um cruzamento entre Nietzsche e Derrida”.