JC Peliano (*) –
O cientista James Lovelock, que se considera humildemente não mais que um inventor ou um mecânico, criador da Teoria de Gaia, previu há tempos, acertadamente, que a temperatura do mundo atingiria um clima extremo, tanto nas mínimas quanto nas máximas, e que no ano 2020 haveria alta probabilidade de ocorrerem desastres.
Não diz exatamente como previu as severas ocorrências para o mundo de desequilíbrios na natureza, mas pode-se deduzir de sua entrevista dada à revista Carta Capital da semana passada, ao afirmar que a gente só percebe o que pode estar acontecendo um tempo após quando as coisas começam a se manifestar de uma forma ou de outra. Afinal, diz ele que a Terra é um organismo vivo que sofre as consequências provocadas por seus habitantes.
Esta, em síntese, é a sua teoria, elaborada em 1979, onde o nome Gaia deriva da deusa da Terra na mitologia grega, mãe de todos os seres vivos. A hipótese basilar é que nosso planeta se trata de um organismo vivo, como qualquer um de nós, em condições adequadas para produzir a energia que o sustenta, controlando o clima e a temperatura, eliminando os detritos e enfrentando suas adversidades e doenças.
Segue daí que ela pode perfeitamente ser habitável na medida em que consegue manter a vida em funcionamento. A engenharia sideral perfeita permite que o globo terrestre gire em torno de sua grande estrela, o sol, ambos garantindo as propícias condições para a sobrevivência dos seres vivos.
Há controvérsias, no entanto, na medida em que outros cientistas discordam da hipótese, em especial porque sustentam que não somente os fatores biológicos regulam a Terra, mas também fatores geológicos, como vulcões, choques de cometas e glaciações, os quais tendem a modificar as condições de vida no planeta.
Enquanto o contra-argumento tem procedência, a hipótese Gaia não perde sua relevância, oportunidade e pertinência na medida em que o conhecimento de um organismo qualquer, assim como de um fenômeno ou evento manifesto requer ciência e tecnologia para seu entendimento. Em outras palavras, como saber de alguma coisa se não a conhecemos suficientemente bem?
Conhecemos nosso planeta a ponto de defendê-lo, corrigir as anomalias, evitar perturbações e melhorar seu funcionamento? Nossas relações com ele, seres vivos com o grande organismo vivo, são conhecidas, aprimoradas e adequadas às nossas mútuas sobrevivências? No mesmo sentido, as relações que nossa espécie mantém com os animais, plantas, micro-organismos, enfim, os demais seres vivos, são privilegiadas para a melhor compreensão e encaminhamento da vida no planeta?
Verdadeiramente não. Na contagem adotada pela civilização estamos há 2020 anos mais em conflitos, explorações e guerras entre nós mesmos do que preocupados e direcionados na construção de uma aldeia global de paz, harmonia, convívio e bem-estar. Lovelock se preocupou com isso e desenvolveu sua teoria, mas já houve outros que previram catástrofes e um futuro nefasto para a humanidade pela cobiça desenfreada, poder a qualquer custo, opressão, degradação da natureza, exploração predatória dos recursos naturais, e assim por diante.
Perdemos o sentido próprio da ecologia, desgastando as relações entre os seres vivos e natureza de forma avassaladora. A passagem do campo para a cidade levou a humanidade a aumentar de tamanho e a procurar mais e mais recursos para sua sobrevivência, ocasionando a exploração massiva, extensa e intensiva, das áreas florestais e silvestres para objetivos econômicos. Os ecossistemas se degradaram e perderam boa parte de sua vitalidade natural pela destruição de espécies animais e vegetais.
A desestabilização do equilíbrio natural entre a humanidade e o ecossistema leva inevitavelmente a presença de distorções no funcionamento dos organismos vivos e manifestações inesperadas de ocorrências imprevisíveis. Como o surgimento este ano do mortal corona-vírus que provoca a doença letal Covid-19. Florestas costumam ser reservatórios de zoonoses, logo quanto mais se explora seus recursos animados e inanimados e as destroem mais se manifestam possíveis e prováveis pandemias.
De fato, boa parte da ciência e tecnologia vem sendo usada para a exploração indiscriminada das riquezas naturais do solo e subsolo para a acumulação desenfreada do capital. Se de um lado esse processo devassa a natureza pela ânsia ilimitada de poder, domínio e lucro, de outro lado ultrapassa-se as reservas dos ecossistemas que são, por definição, limitadas. Por fim, o réquiem segue o féretro da exaustão dos recursos não renováveis.
Decorre, portanto, desse desequilíbrio entre exploração econômica predatória e ecossistemas, segundo a interpretação da hipótese Gaia, que o corona-vírus surge como um sinal da manifestação da natureza para se defender, diminuindo pela doença Covid-19 o tamanho da população.
Dessa forma, o argumento Malthusiano às avessas se aplica ajustando população e natureza ao reduzir a pressão sobre os recursos naturais.
Imperativo se torna a proteção da natureza para reforçar a proteção da humanidade. Como? Desarticular a globalização dominante que leva à padronização das ações de destruição dos recursos naturais. Ações locais são extremamente importantes como a economia solidária, a agroecologia, a agricultura familiar, moedas locais e até mesmo o escambo – a troca pela troca de bens.
O mais importante, porém, é que a difícil experiência que estamos passando pela pandemia do corona-vírus vai nos levar inexoravelmente a rediscutir ações e medidas até então adotadas nas sociedades para a produção de mercadorias e administração dos governos. Haveremos de buscar outras soluções mais adequadas à sobrevivência dos povos e regiões de forma mais digna e igualitária. A forte desigualdade social e econômica, até então escondida atrás de estatísticas e números, se mostrou terrivelmente chocante na pandemia com infectados e mortos em proporções superiores entre os pobres, desempregados e sem proteção social.
O capitalismo no estágio contemporâneo se mostrou totalmente ineficaz, desumano e desigual na regulação da economia e da sociedade em geral. Não adianta mais tapar o sol com a peneira nem maquiar números e ações para esconder o óbvio: já deu! Teremos que caminhar para uma reformulação do sistema sob pena de destruirmos a sociedade e a cada um de nós pela desesperança, privação e doenças.
Tudo o que é sólido se desmancha no ar, até mesmo por um vírus provavelmente saído de um grito de socorro da natureza, se não garantirmos nossa ciência e tecnologia contribuindo e ajudando a todos nós e aos ecossistemas a vivermos em paz, harmonia e equilíbrio! Quem viver terá chance de ver!
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(*) José Carlos Peliano, economista, poeta e escritor.