"A vida é de quem se atreve a viver".


Laurez Cerqueira: “Florestan Fernandes (22/7/1920-10/8/1995) costumava dizer que começou a estudar sociologia ainda criança,  trabalhando nas ruas, quando percebeu as relações de poder, as injustiças sociais, na pedagogia do cotidiano.”
“Florestan é nome para gente de classe alta, não de filho de lavadeira! O nome dele é Vicente!”

Laurez Cerqueira (*) -

Dona Maria, mãe de Florestan, ouviu isso da patroa como uma ordem, dias antes do batismo dele, de quem ela seria madrinha. Ele ficou sendo chamado de Vicente até que o Florestan, já na universidade, se igualasse a Vicente e os dois pudessem conviver na harmonia possível.

Florestan é o nome de um personagem da ópera Fidélio, de Beethoven, e também do namorado de uma amiga de Dona Maria, que era motorista na casa que ela trabalhava. Esse moço foi tão gentil e generoso com ela, durante a gravidez, que o nome Florestan foi dado ao filho em homenagem a ele. Mais do que uma exaltação ao amor, a ópera é um hino à liberdade, à lealdade e à justiça.

A madrinha não tinha filhos, Florestan, uma criança astuta, simpática, tornou-se o centro das atenções na convivência familiar. Ganhava revistinhas, livros infantis, e o casal lia para ele. O Tico-tico era a que ele mais gostava. Dizia que essa o levava a cantos da imaginação nunca antes visitados.

Certo dia, num rompante, a patroa pediu a Dona Maria que lhe desse Florestan definitivamente.  Aquela proposta foi a gota dágua. Com sua dignidade ultrajada, ela mirou os olhos da patroa e deu uma resposta à altura: “Não se dá filhos, o que se dá são cães!”. Dona Maria pegou o filho pelo braço foi até o quarto, arrumou as malas e foi embora morar na periferia de São Paulo.

Ela voltou a lavar roupas e ele foi para as ruas de São Paulo, trabalhar como um adulto, como dizia, para ajudar nas despesas de casa. Primeiro numa barbearia, varrendo os cabelos cortados dos fregueses. Depois numa alfaiataria, como auxiliar; em feiras, carregando compras para as casas de famílias; numa marcenaria; engraxando sapatos; como vendedor; enfim, em qualquer atividade que lhe rendesse alguns trocados para levar pra casa.

Por ser mais rentável, os pontos de engraxates, no Largo Ana Rosa, eram disputados a porradas. Apesar de franzino, tinha agilidade com o corpo, saiu no braço com alguns até conquistar seu ponto. Ali, ele trabalhou por um bom tempo.

Mas foi como garçom que o Florestan começou a preparar a despedida do Vicente. No Bar Bidú, no centro de São Paulo, onde trabalhava como garçom, um jornalista, frequentador do bar, sempre comentava com os amigos sua admiração por Florestan, impressionado com os livros que ele lia atrás do balcão, nos intervalos entre um atendimento e outro. Àquela altura, ele já havia lido clássicos da literatura, da filosofia, da sociologia, muito influenciado pelo companheiro de sua mãe, que também era garçom  e um leitor voraz. Ambos andavam com livros e lia em qualquer canto.

Foi o jornalista que o aconselhou a voltar a estudar. Ele havia cursado apenas até o terceiro ano primário, no período em que morou na casa da madrinha. Animou-se, fez o curso supletivo, na época chamado Madureza. Quando comentou com a mãe que estava decidido entrar para a universidade, achando que ela receberia a notícia com alvíssaras, Dona Maria não gostou do que ouviu. Disse preocupada com a possibilidade de ele passar a fazer parte da elite, de ter vergonha dela, por ser analfabeta, e abandoná-la. 

Ele queria estudar química, certamente influenciado pelo novo trabalho de vendedor de produtos dentários, mas mudou de ideia. Prestou exame para a Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da USP, onde não foi bem recebido no início, por ser vendedor, trajar roupas e sapatos modestos, sempre suado, por andar muito a pé. Aos poucos, conseguiu ser respeitado, levava os estudos a sério, tirava boas notas. Os grupos formados para trabalhos passaram a querer Florestan, devido a sua desenvoltura nos estudos.

Florestan fez a graduação em sociologia, depois mestrado e doutorado em sociologia e antropologia, numa carreira onde conquistou lugar de destaque, como um dos acadêmicos mais importantes do país. Escreveu mais de 50 livros, entre esses, os clássicos: A Revolução Burguesa no Brasil; A Integração do Negro na Sociedade de Classes; e A Organização Social dos Tupinambá.

A Revolução Burguesa no Brasil começou a ser escrito em 1966, em resposta ao golpe militar de 1964. Num breve resumo, o clássico da sociologia expões as estruturas e os vínculos que mantém o caráter autocrático da burguesia numa sociedade como a brasileira.

A Integração do Negro na Sociedade de Classes foi traduzido para o inglês, rendeu ao Professor Florestan Fernandes viagens aos Estados Unidos, para palestras nas universidades, influenciou o movimento radical dos Panteras Negras e dos direitos civis.

A Organização Social dos Tupinambá foi classificado pelo antropólogo francês, que deu aula na USP, como marco no desenvolvimento da antropologia. O Professor Florestan Fernandes reconstituiu a organização social dos Tupinambá, extinta no século XVII, a partir dos cronistas e de relatos de viajantes.

O Professor Florestan Fernandes costumava dizer que começou a estudar sociologia ainda criança,  trabalhando nas ruas, quando percebeu as relações de poder, as injustiças sociais, na pedagogia do cotidiano, na gangorra de uma existência privada das facilidades reservadas aos bem nascidos.

O Professor Florestan Fernandes disse certa vez: ”a coisa mais difícil que fiz na vida foi permanecer fiel à minha classe de origem”. E que “Vicente era a base do Florestan. Sem ele, talvez o Florestan nem existisse”.

A universidade finalmente deu a Dona Maria seu Florestan de volta, que não a abandonou, e o Brasil ganhou um dos intelectuais mais importantes da sua história, que soube interpretá-lo como poucos, criou bases científicas para uma geração de acadêmicos e intelectuais, capazes de apontar as raízes das mazelas do Brasil e o futuro da desejada nação democrática, igualitária, justa e livre.

A coerência com suas ideias, lealdade, rebeldia e o senso agudo de justiça, pareciam ser o esteio de sua vida. Foi assim desde criança,  talvez influenciado por sua mãe, que demonstrou dignidade e firmeza de caráter nos momentos mais difíceis da vida dos dois; durante o  período em que se dedicou à academia; como deputado constituinte;  na vida pública; e até em situações cotidianas.

Certo dia, ele passou mal em casa, devido a complicações da hepatite C, (que  mais tarde o levou à morte), chamou um táxi e foi para o Hospital do Servidor. Quando seu filho Florestan Fernandes Júnior chegou ao hospital, ele estava muito abatido, mas numa fila. Perguntou por que ele estava naquele hospital, se ele era deputado, podia ir para o Sírio Libanês, Albert Einstein, ou outro bom hospital, e por que ele estava na fila? Ele disse que foi para aquele hospital porque ele era servidor público e que aquele hospital era o que devia cuidar dele. E que ele estava na fila porque havia fila, cada uma daquelas pessoas estava com necessidade de atendimento como ele.

Quando a saúde dele se agravou a ponto de restar como única alternativa o transplante de fígado, Fernando Henrique, seu ex-aluno e assistente, era presidente da República, ligou e ofereceu-lhe a possibilidade de fazer o transplante numa clínica em Cleveland, nos Estados Unidos. Ele agradeceu a gentileza e disse que não poderia aceitar aquele privilégio. Aceitaria se todas as pessoas que estavam em situação de saúde mais grave que a dele tivessem a mesma oportunidade. Ele fez o transplante em São Paulo e morreu em decorrência de erro durante a recuperação da cirurgia.

No Congresso, ele se comportava como aluno disciplinado, chegava pontualmente nos horários das sessões, tanto no plenário como nas comissões, ouvia atentamente e participava dos debates. Apesar de não ser obrigado, se sentava na mesma cadeira. Percebendo o hábito dele, os parlamentares até protegiam a cadeira para que ninguém se sentasse. A cadeira era do Professor Florestan Fernandes.

Certa vez Vicente, o homem rústico, apareceu na tribuna da Câmara. O Professor Florestan Fernandes estava discursando, quando um parlamentar de posições de direita pediu um aparte e começou a fazer-lhe provocações do mais baixo nível. Florestan, educadamente foi respondendo às provocações e o deputado insistindo, agredindo. Num dado momento, Florestan perdeu a paciência, disse ao parlamentar que não era homem de engolir desaforos, que se ele quisesse fosse para fora do Congresso, que estava disposto a resolver  a pendenga no braço.

O deputado Vladimir Palmeira, líder da bancada, avisado que Florestan estava querendo ir às vias de fato com um parlamentar no plenário correu às pressas para tentar acalmar os ânimos. Professor Florestan estava  furioso, dizendo ao parlamentar: “já que o senhor não tem argumentos, só provocações, vamos lá pra fora!… Vamos! A gente resolve isso de outra maneira.” O deputado Vladimir Palmeira conseguiu demovê-lo daquela porfia.

O impressionante é que o Professor Florestan Fernandes furioso, que reagia com indignação às provocações de um parlamentar, desafiando-o a ir às vias de fato, era o mesmo que chegava à Câmara cumprimentando parlamentares, funcionários, desde os que trabalhavam na portaria, nas comissões, no plenário, com aperto de mão. Era amável, despojado, bem humorado, sempre com brincadeiras inteligentes e divertidas. Tudo isso é um pouco do Professor Florestan Fernandes.

O Brasil é um país de Vicentes e Florestans.

Quanta falta ele faz, nesse momento tão dramático que vivemos em nosso país!
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(*) Laurez Cerqueira é autor, entre outros trabalhos, de “Florestan Fernandes - vida e obra”; “Florestan Fernandes – um mestre radical”; e “O Outro Lado do Real”. Artigo publicado originalmente no site www.brasil247

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