Danilo Firmino (*) –
"cada um que se vai
uma lágrima re-cai
nós, oceanos"
Turiba
Acredito que a humanidade nunca foi tão verdadeira na sua incerteza como anda sendo nestes tempos tenebrosos. Parece um paradoxo, mas são momentos de perplexidades e medos. É uma bateção de cabeças generalizada.
Diante da pandemia planetária, podemos enxergar que boa parte das pessoas vai ficar em "recuperação", ou tentará garantir boas notas na prova final para ver se passa de ano. Os ensinamentos são muitos e intensos. Tudo é pra ontem. Mas tem aqueles grupos de pessoas que já foram reprovadas pela vida no primeiro bimestre na matéria “Humanidades”.
Em todos os nossos passos e ações é verdadeira a presença da morte. A velha senhora passa a ser uma constante para os seres humanos que fazem tudo para viver com o controle do mundo e de todos os outros seres em suas mãos.
Muita gente ainda só pensa em viver mais e com requintes de luxo, mesmo que para isto tenha que promover a morte de outros ou pouco se importando com a grande maioria que não está conseguindo sobreviver, ou viver quase morrendo.
Mas a verdade é que a morte, tão dita que a todos igualaria na hora chegada, se materializou no Coronavírus e assim parece ter antecipado um pouco esse momento.
Já é a segunda vez que escrevo sobre a morte em menos de 15 dias. Ou como lidarmos com ela no momento da quarentena. A chapa está quente e o bicho está pegando. Mas, diferente da outra que era apenas uma pergunta – como serão nossos Gurufins? - agora há um medo generalizado que me fez chorar e sentir várias vezes o peso da existência.
Afinal, perdemos pessoas que faziam parte de nossas vidas, como o compositor Aldir Blanc e Dona Neném da Portela, baluartes da cultura popular. Para mim, referências no samba e na vida.
Convivo com as duas notícias que já eram arrasadoras, quando chegou outra. Depois mais outras e hoje já são quase 12 mil brasileiros mortos por este vírus letal e invisível.
Mas a notícia da morte de Flávio Migliaccio foi doída para mim e toda essa gente dos subúrbios brasileiros. Foi embora o Tio Maneco, o seu Chalita, o Xerife e para mim nasceu um discípulo de Darcy Ribeiro que parecia estar no casulo de uma vida, segundo ele, "não tava valendo a pena..."
Flávio cometeu um ato político e deixou os motivos e um programa de vida, uma reivindicação clara, objetiva e talvez uma das mais importantes de humanos, algo que nenhum movimento social, partido político ou campo, tenha dito até agora nesse momento de pandemia no Brasil.
Foram oitenta e cinco anos de dedicação à arte, de dedicação à formação de uma geração de artistas e povo que infelizmente não foi o desejado por ele, e por todos nós. Neste momento em que a fome volta à cena do País, com mais força devido à crise do coronavírus, que a democracia é atacada e nem a escola que só servia para matar a fome das nossas crianças pode abrir...
O Tio Maneco tentou mais um ato de heroísmo. O Tio Maneco atacou mais uma vez os lucros e a ganância das fábricas da insensibilidade. E no ato mais à flor da pele dos vivos, findou-se no suspiro de milhões de crianças brasileiras.
Como um herói da maioria silenciada só foi ouvido com o derramar do sangue. Tem sido assim na “assassina sina” - é um verso de Aldir, por isto as aspas devidas – dos que lutam e lutaram pela maioria neste país que, como dizia Darcy Ribeiro, “queima crianças feito carvão”.
Flávio ao se despedir entrega sua vida ao futuro desse país e diz claramente “cuidem das crianças”. O fato de Flávio ter achado que foram 85 jogados no lixo, não é o que mais me assusta. Ele achou isso e fez algo para reverter. Como ator realizou o máximo que poderia, usou do que sempre aprendeu e buscou para tocar o mundo: a emoção!
O choque da morte é o maior e último ato da vida. Agora resta aos vivos o que fazer dele. E o que me deixa apreensivo é que, mesmo com esse choque, as pessoas não tem dado a ênfase ao mais importante: ao buscar a morte, Flávio quis fazer-se vivo e eterno. Flávio morre pelo futuro da humanidade. E dar as nossas crianças, um caminho a seguir.
Por favor, choremos e é necessário. Enxugar as lágrimas e buscar não tê-las novamente e em grande quantidade é um acalanto para a alma e, no caso, para a memória do que se foi. Não adianta falar o óbvio. O que levou Flávio ao ato tão extremo de “que a humanidade deu errado”, sabemos. Está tudo uma merda mesmo: ser idoso é um caos quando se tem um presidente que fala “e daí?” para os milhares de mortos.
Mas não podemos falar “e daí?” para as crianças, e muito menos para o Flávio, discípulo póstumo de Darcy em vida. O único remédio para morte é a vida, o que é impossível. Mas o único remédio para um presente ruim é a construção de um futuro melhor! Cuidemos pois das nossas crianças...
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(*) Danilo Firmino, do Coletivo Fala Subúrbio, Rio de Janeiro.