Danilo Firmino (*) –
São 5 horas e 52 minutos do dia 15/4/2020, uma quarta-feira. Esta é a terceira noite seguida da minha vida que varo a madrugada sem fazer “samba e amor até mais tarde”, como cantou Chico Buarque, para depois “sentir muito sono de manhã”.
É a terceira noite que experimento, após receber a notícia da morte do mestre Tantinho da Mangueira; e saber, sim, que ele está morto.
Claro, vocês que não são sambistas devem estar se perguntando: como esse cara disse que soube da morte do outro, e não queria acreditar que ele morreu? A pergunta meio esquisita só faz sentido porque para maioria das pessoas, a morte sempre foi sinônimo de sofrimento fúnebre, choro, desespero pelo que se foi. Mas para nós, sambistas, não. Tem algo mais nesse acontecimento.
À palavra morte, todo sambista/compositor condiciona um rito, uma palavra mágica e um gesto de amor a quem partiu, dando outro sentido às despedidas. A isso chamamos de gurufim. No dicionário, gurufim “é o ritual fúnebre nas comunidades afro-brasileiras, acompanhado de algum passatempo para tornar a atmosfera menos pesada; cerimônia onde as pessoas cantam e dançam para homenagear o morto”.
Sim, tenho que ser honesto e dizer que o medo dessa “senhora” bateu há umas três semanas quando soube que Ellis Marsallis morreu nos EUA vítima da Covid -19.
Acordei então para o que nos esperava, quem ainda não assistiu, assista o documentário Samba & Jazz (clique aqui - trailer no Youtube) mostrando o quanto se assemelham em vida e na morte as duas expressões culturais mais populares das sociedades negras brasileira e americana. O recorte está justamente em como lidamos com a morte.
Bem, chegou o momento do Tantinho, que não foi vítima do Covid-19, mas morreu no início do vírus. Ele foi enterrado no Cemitério de Irajá, subúrbio do Rio de Janeiro. Portanto, um dos destinos e até pedidos de muitos.
Meu mestre e padrinho Ivan Milanez sempre me falou: “enterro em Irajá é festa das boas”. Quem vivo estava, revive. Na festa dele, o sabido chegou até atrasado, e antes de fechar a cova levou o relógio de um, que distraído, cantava um samba. Testemunhas presentes no gurufim garantem que o finado fez isso para não perder a hora de voltar.
São essas histórias, e casos como este, que animam os gurufins e farão com que nós, agora, aprendamos como todo mundo morre. Eu, por exemplo, já perdi enterro estando no cemitério, com alguns amigos e amigas. Fomos tomar um “café” e a cova da dona da festa estava na frente da capela. Era só atravessar a ruazinha. Mas quando a gente voltou, já era tarde: "quem beijou, beijou: quem não beijou não beija mais". Só restou guardar o número da sepultura pra fezinha do dia seguinte.
Pois bem, até isso a malvada pandemia nos roubou: temos mortos e não temos gurufins. O samba terá que aprender a chorar como todo mundo sempre chorou... Alguns apostam nas transmissões ao vivo (lives) para um novo estilo de gurufim.
Esquisito. Eu não estou muito crente disso. Afinal, não me vejo olhando para o telefone ou para uma tela de um computador enquanto minhas lágrimas são desviadas da tristeza para um largo sorriso que canta e bate palmas, olhando o parceiro ou a parceira que se foi, esticada na mesa; enquanto lembramos de momentos felizes que vivemos juntos. Dá não, é muita confusão.
Na pandemia, nem vamos poder ver quem partiu! Beber demais também fica brabo, não se bebe morto não visto... Morte sem corpo é só ausência!
Mas sigamos. Vamos adiante que lá na frente tem samba... Segura essa gente bamba! Pode demorar, mas vai passar. Gurufim, não pode ter fim.
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(*) Danilo Firmino, do Coletivo Fala Subúrbio, é sambista, autor do samba enredo da Mangueira de 2019 (Maris, Marielles, Malês).