Maria Lucia Fattorelli (*) –
Durante toda a semana passada, Paulo Guedes e Henrique Meirelles, ambos com longo histórico na atuação no mercado financeiro, participantes da alta cúpula de grandes bancos, fizeram de tudo para desviar o foco do imensurável rombo de trilhões de reais que está escondido na chamada “PEC do Orçamento de Guerra” (PEC 10/2020): a mais escandalosa transformação de trilhões de papéis podres dos bancos em “dívida pública”.
Guedes e sua equipe realizaram diversas reuniões com senadores que, segundo os jornais, vararam madrugada adentro. O ex-Pactual quer que os senadores aprovem a “PEC do Orçamento de Guerra” de qualquer jeito! Quer que façam como Rodrigo Maia na Câmara dos Deputados: lá, a PEC foi protocolada na quarta-feira à tarde e aprovada em segundo turno na sexta-feira à noite.
Para convencer senadores, Guedes passou a pregar a venda de Reservas Internacionais para aplicar os recursos nos gastos com a pandemia!
Meirelles, por sua vez, passou a pregar a impressão de dinheiro para ter recursos para combater a pandemia. O ex-presidente do Bank Boston (que foi vendido para o Itaú em 2006 quando ele era presidente do Banco Central) virou o seu discurso do avesso.
Meirelles foi o responsável pela explosão do enxugamento de moeda existente no caixa dos bancos, abusando do volume das Operações Compromissadas que, na prática, corresponde à remuneração da sobra de caixa dos bancos. Foi durante a sua gestão à frente do Banco Central que esses ilegais “depósitos voluntários” da sobra de caixa dos bancos atingiu quase meio trilhão em 2009 e, não por coincidência, naquele ano verificou-se uma queda repentina do PIB, completamente fora da curva!
Como acreditar que essas pessoas de repente passaram a ficar “boazinhas”?
Como acreditar que a mesma pessoa que há poucos meses pregava o fim da aposentadoria de trabalhadores rurais, que teriam que pegar na enxada até morrer; a redução do BPC dos miseráveis idosos para apenas R$400,00 e só após os 70 anos, entre outras maldades, de repente, está pregando a venda de Reservas Internacionais para aplicar recursos nos gastos sociais de combate à pandemia?
Como acreditar que a mesma pessoa que defendia o enxugamento de moeda ao extremo, e que à frente do BC provocou a escassez brutal de moeda no mercado, como algo imprescindível para a economia, de repente, está pregando impressão de moeda para irrigar a economia, a fim de aplicar recursos nos gastos com a pandemia?
Não estamos lidando com principiantes! Não sejamos ingênuos.
O que está por trás dessa guinada nos discursos de Guedes e Meirelles, caciques históricos da cúpula do mercado financeiro?
Divulgação feita por diversos meios de comunicação em novembro/2019, portanto, bem antes da pandemia do coronavírus, indicava a “existência, nas carteiras dos maiores bancos, de créditos privados podres acumulados nos últimos 15 anos, chega a quase R$ 1 trilhão: R$ 915 bilhões, sem correção da inflação, de acordo com levantamento da Ivix, especializada em reestruturação de empresas em crise, a pedido do jornal O Estado de S. Paulo”.
Repararam? Quase R$ 1 trilhão de papeis podres nas carteiras de grandes bancos.
Isso, sem calcular correção monetária pela inflação! Se corrigir, chegaremos a vários trilhões de reais!
Essa papelada podre não afetou em absolutamente nada os imensos lucros que esses mesmos grandes bancos acumularam nos últimos anos, apesar da grave crise que vem abalando a economia brasileira desde 2015! Enquanto o PIB caiu e seguiu estagnado, milhões de empresas quebraram e o desemprego explodiu, o lucro desses bancos seguiu batendo recorde sobre recorde a cada trimestre! Ademais, os bancos já deduziram de seus lucros tributáveis as eventuais perdas com esses papéis podres em suas provisões bilionárias, que só em 2015, por exemplo, foi de quase R$190 bilhões. Assim, já se ressarciram desse prejuízo!
A “PEC do Orçamento de Guerra” que os grandes caciques do mercado financeiro tanto querem aprovar coloca o Banco Central para comprar esses papéis privados de bancos em mercado de balcão (mercado secundário, conforme § 9o do artigo 115 da PEC 10/2020), onde as negociações acontecem por telefone, sem supervisão, sem regulação, sem controle algum, fora das bolsas de valores, entre 2 partes completamente independentes: E o Banco Central vai ser uma dessas partes independentes!
O Banco Central vai pagar com recursos do Tesouro Nacional, isto é, com o nosso dinheiro.
Conseguem imaginar um funcionário do Banco Central comprando essa papelada podre, em contato direto com o representante da Tesouraria de algum desses bancos, comprometendo bilhões e até trilhões de dinheiro público em uma negociação telefônica? O atual presidente do Banco Central, Roberto Campos Neto, atuou exatamente na área de Tesouraria do Santander e sabe como são feitas essas operações!
Não poderá haver investigação alguma dessas operações feitas pelo Banco Central no desregulado mercado de balcão com o nosso dinheiro: A MP 930/2020 coloca a diretoria e alguns funcionários do Banco Central acima da Lei de Improbidade Administrativa.
A própria PEC 10/2020 já admite que não teria como fiscalizar operações feitas no desregulado mercado de balcão, e restringe até mesmo a atuação do TCU, que somente “apreciará a prestação de contas, de maneira simplificada”, conforme consta de seu § 13o, artigo 115. O rastreamento dos gastos noticiado pelo TCU, não alcançará as operações realizadas no desregulado mercado de balcão pelo Banco Central, cujos operadores estarão imunes, conforme MP 930/2020, que já está valendo!
Considerando que o dinheiro existente no orçamento federal não será suficiente para essa farra, o Tesouro Nacional irá emitir mais e mais títulos da dívida pública, que esses mesmos grandes bancos irão comprar, pois nenhum país do Planeta paga os juros que o Brasil paga!
Em vez de representar um socorro aos gastos com a pandemia, essa “PEC do Orçamento de Guerra” (PEC 10/2020, § 9o do artigo 115) promove a reciclagem dos trilhões de papéis podres acumulados nos bancos por títulos da dívida pública brasileira!
Os bancos ficarão livres da papelada podre, que será substituída pelos títulos mais rentáveis do mundo! O Tesouro Nacional, ou seja, nós, o povo, ficaremos com uma dívida pública gigante, que para ser paga exige contínuos cortes de gastos sociais; cortes de investimentos públicos; privatizações do nosso patrimônio, contrarreformas etc., aprofundando esse modelo que a própria pandemia do coronavírus está provando, escancaradamente, que não dá certo!
É hora de arrancar todas as máscaras e enxergar o que está por trás dessa “PEC do Orçamento de Guerra”: a escandalosa troca de trilhões de papéis podres acumulados nos bancos por títulos da dívida pública brasileira, que passará a crescer de forma exponencial!
O Senado não pode permitir essa trapaça! Os § 9o e 10o do artigo 115 que a PEC 10/2020 devem ser sumariamente suprimidos e a MP 930/2020 rejeitada!
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(*) Maria Lúcia Fattorelli é Coordenadora Nacional da Auditoria Cidadã da Dívida, trabalhou como Auditora no Ministério da Fazenda e estudou Administração na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).