"A vida é de quem se atreve a viver".


Felipe Areda: “Em tempos em que o presidente do país se dedica a pensar sobre a rotina excretora da população brasileira, WC é uma peça necessária”. (Fotos: Rui Miranda)
WC: a indignidade do Poder

Felipe Areda –

Brasília - O filósofo Jack Halberstam afirma que “o banheiro é uma representação, uma paródia, da ordem doméstica fora da casa, no mundo exterior” (*). Os banheiros públicos tentam criar um espaço de privacidade em meio ao espaço público, criando uma frágil intimidade protegida para quem precisa defecar. A proteção das cabines de 1 x 1,50m² é certamente ilusória. Se garante uma certa privacidade visual, os barulhos e cheiros se espalham sem pudor. Não há nada de privado em uma privada pública.

Nesse sentido é precioso que o cenário de WC, a novíssima peça de Alexandre Ribondi, seja marcado pela presença de uma privada dourada no centro da frente do palco. Sem acento protetor paras as bundas ou cabine protetora para os pudores, a privada enfeitada pela cor da nobreza opera como uma excelente metáfora de um poder político que há muito tempo abandonou qualquer necessidade de mascaramento ou decoro. Em tempos em que o presidente do país se dedica a pensar sobre a rotina excretora da população brasileira, WC é uma peça necessária. Não só o “Rei está nu!”, como observa a criança sincera do icônico conto do dinamarquês Hans Christian Andersen, como está defecando de porta aberta enquanto faz uma transmissão ao vivo pelo perfil oficial da presidência.

WC é cenário e personagem da peça de Ribondi. Wagner Cardoso Neto é um jovem deputado interpretado por Fernando Oliveira. Filho do também deputado federal Wagner Cardoso Filho e do senador Wagner Cardoso, a figura é facilmente reconhecida como um dos inúmeros deputados herdeiros de um legado político familiar que tomam o espaço público como um playground e o congresso como um pátio de escola. A interpretação de Fernando Oliveira (“Virilhas”, 2017; “Você me Sente?”, 2019) aposta na manifestação de um poder amedrontado, oscilando entre a empáfia juvenil e o desespero suplicante, como um adolescente rico que usa todo o seu poder e privilégio para humilhar a empregada, morre de medo dos coleguinhas da rua e entra em pânico diante de qualquer bronca do pai.

Perdendo uma mochila repleta de dinheiro dentro do banheiro do Congresso Nacional, WC entra em desespero e vê no faxineiro Ubiratã o único suspeito ou salvador. A personagem, que poderia beirar a caricatura do menino rico mimado, consegue provocar alguma simpatia pela interpretação de Fernando. Revelando o profundo medo do pai, expõe a vulnerabilidade de um poder, que embora forjado desde a tenra idade, é artificial e desajeitado como um jovem desengonçado que o usa um terno grande emprestado em seu primeiro emprego na firma do pai.

Ubiratã recusa o nome “faxineiro” e se define como “agente sanitário da Câmara dos Deputados”, buscando encontrar algum reconhecimento ou prestígio em exercer um trabalho público que sabe ser alvo constante de humilhações. O desagrado com o nome “faxineiro” ganha sentido ao seu papel não ser o daquele que afasta com um feixe (ou vassoura) a sujeira da vista, mas aquele que se vê como um agente restaurador da sanitas, da limpeza e da saúde, especialmente a moral.

Brilhantemente interpretado por Marcelo Pelúcio (“Felizes para sempre”, 2015; “Um jantar com Hitchcock”, 2014), Ubiratã é um trabalhador pobre, com uma história marcada por humilhações, que encontra no confronto com WC o medo de ter a vida destruída ao descobrirem que ele escondeu a mochila do deputado, bem como vê naquele momento a chance de ser ouvido e visto como um igual. Aproveitando a oportunidade de dialogar pela primeira vez, após diversas tentativas de buscá-lo em seu gabinete, Ubiratã lembra que ele e WC vieram da mesma cidade e, mostrando que acompanha atentamente seu trabalho parlamentar, cobra do conterrâneo que melhor represente sua cidade natal.

Marcelo Pelúcio introduz em cada ato o medo e a incerteza de Ubiratã. Alegra-se de encontrar tanto dinheiro, mas não sabe o que fazer com ele. Toda vez em que enfrenta o deputado, sua coragem é imiscuída pelo medo de se ver em um caminho sem volta. Com uma incrível capacidade de atuar nos entremeios do texto, Pelúcio recheia cada ato de uma angustiosa briga entre vontades e contra vontades, envolvendo todo seu movimento de uma pujante tensão. O clima pesado é contrabalanceado por um corpo, nitidamente lapidado por sua experiência como clown, que manifesta uma insegura singeleza, atraindo simpatia e humor, fazendo de Ubiratã uma personagem que rapidamente reconhecemos e com quem nos identificamos.

Não é em vão a escolha de um nome de origem tupi, Ubiratã (übü’ra e á’tã, “tacape forte”) representa o próprio povo brasileiro e tudo aquilo que gostaríamos de falar cara a cara com os grandes políticos poderosos. Wagner, por outro lado, como diz a origem germânica do seu nome, embora pomposo como um vagão de trem europeu, nada mais é que um transportador.

Em seu confronto com Wagner Cardoso, um dos momentos mais emocionantes da peça é certamente quando Ubiratã diz que seu maior sonho é ter um endereço. Não se trata de ter um casa, pois ele já tem, mas da sua casa ser reconhecida com um lugar no mundo, fazendo com que ele tenha um comprovante de endereço que faça ele parar de sofrer tantas humilhações em repartições públicas. Em Brasília, cidade em que a população pobre é recorrentemente tratada como “invasora” pelo poder público, Ubiratã lembra que ele e WC vieram do mesmo lugar, ambos para trabalhar em Brasília no Congresso Nacional, mas que o deputado, diferentemente dele, nasceu em berço (ou privada) de ouro e não sabe o quanto faz falta ter um comprovante de residência com seu nome. Quem são invasores, afinal?

O banheiro do Congresso é, para Ubiratã, microcosmo de exercício do poder, espaço que entremeia o público e o privado. Cobrando que WC faça uma lei que proíba parlamentares de sujarem o banheiro em que trabalha, vê naquele que mija no chão ou não dá descarga a falta de decorro de quem anda pelo mundo esperando que a população pobre vá atrás dele limpando, inclusive literalmente, as suas cagadas. Quando [contém revelação de conteúdo] Ubiratã diz que se WC quiser seu dinheiro de volta terá que pegá-lo do vaso sanitário com a boca, seu ato não deve ser entendido só como revanchismo, mas como a necessária desvelação da indignidade do Poder político. Qual o limite de WC? Qual a humilhação que aquele que está acostumado a humilhar está disposto a passar? Até onde vai o decoro daquele que não tem decoro algum?

O espetáculo “WC”, com texto e direção de Alexandre Ribondi, está em cartaz na simpática Casa dos Quatro, até 01 de setembro de 2019. Cabe destacar que a peça foi aprovada com nota máxima pelo edital Áreas Culturais do Fundo de Apoio à Cultura do Distrito Federal, o qual foi cancelado para que seu orçamento seja desviado do fomento cultural. A peça foi realizada pela garra de quem, mesmo sem acesso a recursos, vê na arte umas das principais ferramentas de contestação do poder. Por isso, apoiem o teatro local.

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Ficha Técnica:

Texto e direção: Alexandre Ribondi

Elenco: Marcelo Pelucio e Fernando Oliveira

Produção: Luisa de Marillac

Produção Executiva: Rui Miranda

Assistência de direção: Josias Silva

Temporada em agosto aos sábados e domingos, sempre às 20h.

Classificação indicativa: 16 anos

Endereço: Teatro da Casa dos Quatro — SCLRN 708, BL F, Loja 42 — Asa Norte – Brasília.

Ingressos antecipados no Sympla.

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(*) Halberstam, J. - Techno-homo: on bathrooms, butches, and sex with furniture. In: TERRY, Jenifer & CALVERT, Melodie (Eds.). Processed Lives. Gender and Technology in the Everyday Life. London and New York: Routledge: 1997, p.185.

Este artigo foi publicado originalmente no site:

https://medium.com/o-ato-e-o-afeto/wc-a-indignidade-do-poder-d55ca2c3719

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